PROSTITUIÇÃO, DIREITO E MORAL: UMA REFLEXÃO JURÍDICO-PENAL.

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PROSTITUIÇÃO, DIREITO E MORAL: UMA REFLEXÃO JURÍDICO-PENAL.

Berlinda DINIS, Estudante do 4ª Ano do Curso de Direito da Universidade Independente de Angola

Nota Introdutória

O presente artigo tem como epicentro da sua abordagem, a necessidade de se refletir profundamente sobre a questão da prostituição e a moral, num paralelo entre a actividade das prostitutas e as exigências éticas e morais, num Estado Democrático de Direito, cientes de que a temática, para muitos configura ainda um tabú em função de convicções religiosas e princípios conservadores, sendo mesmo visto como um não assunto pelas razões avançadas. Neste artigo, nos referimos a prostituição voluntaria, de pessoa maior de idade e em pleno gozo das suas faculdades mentais, que desempenha tal actividade de forma reiterada e profissional, como meio de sustento e trabalho, também conhecidas/os como “profissionais de sexo”. A abordagem é meramente académica e visa abrir caminho a uma discussão seria sobre os direitos pertencentes as mulheres e homens que desempenham tal actividade, bem como a sua regulação.

Este artigo, surgiu sobretudo da necessidade de se clarificar se a actividade, como apresentada supra, configura ou não um facto ilícito, isto é, um crime. A resposta que nos propusemos depois de consultado o código penal Angolano é negativa, porém, na prática, tem se verificado uma espécie de justiça arbitraria por parte dos agentes da polícia e uma discriminação acentuada em função da cultura moral comum, camuflada pelo véu da hipocrisia. A prostituição existe e colide com a moral, porém não é crime.  Este é o nosso desafio, explicar como isso se processa do ponto de vista prático. Assim como considerávamos excessiva a criminalização do adultério à luz do código penal de ora revogado, um código colonial, também julgamos ser necessária a expurgação do código penal vigente de tipos legais de crimes que apenas ferem a ética e a moral, sem necessariamente ferir um bem jurídico fundamental individualizável, falamos do aborto e de outros tipos legais de crime, afinal, o Direito não é um servo fiel da moral, nem a moral é necessariamente jurídica, podendo mesmo o Direito ser imoral. Para o contexto de analise sobre o trabalho de sexo, entendido aqui como prostituição, tentaremos fazer uma análise jurídica, baseada em dados e experiências que existem no nosso contexto, nos socorreremos também ao estudo efectuado pela SCARJOV[1], intitulado “Estudo das condições sociais e do quadro legal das trabalhadoras de sexo em Angola”, publicado em Setembro de 2015.

Com esta abordagem, não se pretende elaborar um juízo valorativo sobre a actividade prostitucional em si, isto é, se é boa ou má, certa ou errada, mas sim pretendemos reforçar as garantias do princípio da legalidade, do Estado Democrático de Direito e da própria dogmática jurídico-penal, num claro exercício pratico de separação dos campos de actuação do Direito e da Moral. Tendo legitima atenção ao artigo 189º do código penal, destarte, podemos adiantar desde já, que em Angola, a prostituição como definimos aqui neste trabalho de pesquisa, não é crime e nada tem haver com o lenocínio, sendo este último, um crime, previsto e punível pelo código penal Angolano.

1. A Natureza Social do Homem

A natureza humana é eminentemente social. E, desta sociabilidade intrínseca ao homem, surge a necessidade de existirem normas e regras de conduta que possam regular a conduta do homem em sociedade, caso contrário, a vida social como a conhecemos hoje não seria possível.  Já dizia Aristóteles […] uma cidade não é uma comunidade de residência cujo fim seja apenas evitar a injustiça mútua e facilitar as trocas comerciais. Todas estas condições devem estar presente para que a cidade exista; mas a sua presença não é suficiente para a constituir. O que constitui uma cidade é uma comunidade de lares e de famílias com a finalidade da vida boa e a garantia de uma existência perfeita e autónoma. (Política, Liv. III, 1280b 30).

Nesta linha de entendimento, surge o Direito que acreditamos ter nascido com a própria sociabilidade e, portanto, conatural a esta[2]. Pois, uma perspectiva antropológica sugere que o homem é um produto inacabado, por isso, necessita de criar instituições que o guiem e ofereçam uma segurança indispensável nas relações com os outros homens[3]. Dai que surge o Direito como o entendemos hoje; um sistema de normas e princípios jurídicos instituídos por autoridade competente com a finalidade de regular a vida em sociedade. (perspectiva positivista do Direito).

Não se trata de insuficiência, o facto é que a norma jurídica não existe isolada na ordenação social, pois existem outras ordens normativas para além do Direito, embora sem as especificidades daquela (Norma jurídica), como por exemplo, a falta de coercibilidade enquanto principal aspecto distintivo.

Estas normas são: as normas religiosas, que regulam as relações dos crentes com a comunidade terrena seguindo os mandamentos de um ser transcendente (Deus)., bem como doutrinas de religiões (cristianismo, islamismo, budismo…). Normas de trato social, aquelas que tornam a convivência humana mais amena e as normas morais, entendidas como aquelas que sendo fruto de paradigmas e conceitos, estabelecem princípios auto-vinculativos que orientam as condutas humanas. É certo que em relação ao Direito existem pontos de convergência e pontos de indiferença, pois, a moral não é jurídica e o Direito pode ser imoral. Esta na verdade é a questão central desta reflexão jurídico-filosófica penal.

2. Essência da Moral

Ética, Moral e Direito

A palavra ética tem origem do grego ethos, que pode significar “carácter”, “costume” ou “modo de ser”. Na realidade, o sentido da palavra ética se inspirou na expressão grega ethike philosophia, que significa filosofia moral ou filosofia do modo de ser. Os romanos traduziram o ethos grego para o latim mos (ou no plural mores), que quer dizer costume, de onde provem a palavra moral em português. Logo, para efeitos do presente artigo, ética e moral não diferem no seu conteúdo.

Tanto o ethos (carácter) como o mos (costume), indicam um tipo de comportamento que não é natural, o homem não nasce com ele como se fosse um instinto, mas sim que é adquirido ou conquistado por hábito. Nos ensina Adolfo Vasquez.

Portanto, a moral, pela própria etmologia, diz respeito a uma realidade humana que é construída histórica e socialmente a partir das relações colectivas dos seres humanos nas sociedades específicas onde nascem e vivem, como também, em diferentes épocas.

O professor e Advogado, Marcus Acquaviva, no seu livro intitulado Ética Jurídica, a respeito do conceito de ética resume da seguinte forma:

-A ética observa o comportamento humano e aponta os seus erros e desvios

– Formula os princípios básicos a que deve subornar-se a conduta do homem

-A par de valores genéticos e estáveis, a ética é ajustável a cada época e circunstância.

A relação entre a moral e o Direito não passou despercebida na antiguidade clássica.  Embora não se tenha elaborado um critério que permitisse a sua distinção, não deixou de se ter a intuição de que não são duas realidades que não se podem confundir. Constituem exemplos significativos a afirmação de Paulus “non omne, quod licet, honestum est” e a regula atribuída a Ulpianus “Cogitationis poenam nemo patitur”.

Porém, foi na idade moderna que este problema adquiriu um sentido mais vital ou pragmático na sequência dos conflitos entre a Igreja Católica e os vários cultos protestantes e das dissensões que dividiram os protestantes em diversas correntes. Os Estados passaram a intervir na vida particular dos cidadãos para indagar as suas convicções religiosas: Uns queriam que os súbditos fossem católicos; outros, protestantes. Surgiu então, desta maneira a necessidade de se delimitar claramente as zonas de interferência do poder público, só possível através da distinção entre os campos jurídico, moral e religioso. Merece uma nota de destaque, o jurisconsulto Thomasius, que para tutelar a liberdade de pensamento e de consciência, procurou distinguir a moral do Direito separando as acções humanas de foro íntimo das acções humanas de foro externo.

Neste diapasão, o direito só deve interessar-se pelos aspectos da vida de relação, isto é, acções humanas depois de exteriorizadas, ao passo que a moral, ocupa-se do que se processa no plano do pensamento e da consciência, que são actos internos. Porem, este critério se mostrou insuficiente, pois, existem actos puramente internos, mas não há acções humanas exclusivamente externas e porque o Direito disciplina acções humanas livres, não dispensa factores internos.

3. Prostituição Versus Moral Social

A moral, é nas palavras de Cabral de Moncada, 3 constituída pelo conjunto de preceitos, concepções e regras obrigatórias para a consciência, pelos quais o homem se rege, antes e para além do Direito. Algumas vezes conflituante com este.

A moral abrange um campo maior de actuação comparativamente ao Direito por ser um imperativo de consciência. Seguindo o raciocínio de Kant na sua obra fundamentação da metafísica dos costumes “Age sempre de tal modo que o teu comportamento possa vir a ser princípio de uma lei universal”. Por esta razão, alguns entendem que o Direito deve sujeitar-se as exigências morais, chegando mesmo ao ponto de formularem a teoria do mínimo ético, segundo a qual, o Direito tem a função de criar as condições éticas minimamente necessárias para existência de uma vida social pacifica e justa, dai que muitos comportamentos são criminalizados com base em fundamentos morais, o que ao nosso ver, configura um atropelo a ciência jurídica e a racionalidade das leis, pois o Direito não é um servo da moral como nos faz perecer esta teoria.

Visto que, seguindo o raciocínio de Emanuel Kant, o direito caracteriza-se pela exteriorização, a ética pela interiorização, o direito apresenta uma hétero-tutela ao passo que a ética constitui uma auto-tutela. Dito isto por palavras menos técnicas, o Direito não depende do individuo ou de costumes regionais, ao passo que a moral é individual e depende de convicções e princípios que podem ter origem costumeira, sendo que ter o costume enquanto fonte de Direito, é olhar sempre pelo “retrovisor do carro”, na medida em que ninguém sabe ao certo quando começou e quais as verdadeiras razões deste.

Existe na realidade jurídica Angolana, alguns ilícitos penais (crimes) que assim são designados com base em exigências morais, pois a sua criminalização do ponto de vista da protecção de bens jurídicos, defendem apenas moralidades, uma vez que não se verifica a violação de um bem jurídico individualizável. Para melhor compreensão e reflexão sobre este aspecto, devemos ter bem assentes alguns conceitos básicos, tais como; O que é a prostituição? E o que é um crime?

Sem querer entrar numa acesa discussão sobre juízo de valores, frequentemente coloca-se a questão de se saber se a prática da prostituição que por si mesma é das mais antigas do mundo, é ou não um crime. Se a resposta fosse positiva como poderemos extrair do artigo 189º do código penal Angolano, qual seria o bem jurídico violado?

Prostituição: consiste no estabelecimento voluntário de relações sexuais em troca de vantagens económicas, sendo dinheiro ou outros bens materiais.

Crime: pode ser definido do ponto de vista formal e do ponto de vista material. Formalmente, nos termos do artigo 1.º do Código Penal Angolano, o crime é todo facto voluntário declarado punível por lei. Ao passo que, o Prof. Eduardo Correia, apresenta-nos de forma magistral uma noção material, considerando crime, todo facto/comportamento que lesa ou põe em perigo de lesão bens jurídicos fundamentais. Podemos constatar no extrato abaixo o crime de lenocínio, punível pelo Código Penal Angolano.

Todas estas reflexões, argumentos e contra-argumentos, levam-nos a um debate não só sobre o corpo da mulher como também sobre as políticas que sobre ele recaem. É preciso uma reflexão sobre como a sexualidade é perspetivada num contexto em que a estrutura patriarcal reina. Perceber o patriarcado é porquanto perceber como se limita o papel da mulher a um ser meramente reprodutor, limitando a sua autonomia sexual. Sylvia Tamale, fala das 10 faces da sexualidade, apontando a estrutura política, religiosa e legal como uma das maiores restrições da sexualidade, seja em forma de moralização sexual, seja em prol do reforço do papel reprodutor da mulher, seja nas limitações legais que definem com quem e como praticamos a nossa sexualidade.

Podemos desde modo confirmar que existe sim um conflito latente entre a moral e a prostituição, porém, o Direito não regula tal divergência.

4. O Crime de Lenocínio no Código Penal Angolano

Artigo 189.º
(Lenocínio)

  1. Quem, com intenção de lucro, promover, favorecer ou facilitar o exercício da prostituição ou prática reiterada de actos sexuais por outra pessoa, aproveitando-se de situação
    de necessidade económica ou particular vulnerabilidade da vítima ou a constranger a esse exercício ou prática, usando de violência, ameaça ou fraude, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.

Artigo 195.º

(Lenocínio de menores)

  1. Quem promover, incentivar, favorecer ou facilitar o exercício da prostituição de menor de 18 anos ou a prática reiterada de actos sexuais por menor de 18 anos é punido com pena de prisão de 3 a 12 anos. 2. Se o agente usar de violência, ameaça ou coacção, actuar com fim lucrativo ou fizer profissão da actividade descrita no número anterior, o menor sofrer de anomalia psíquica ou tiver menos de 14 anos, a pena é de prisão de 5 a 15 anos.

Artigo 197.º

(Recurso a prostituição de menores)

  1. Quem, sendo maior, praticar acto sexual com menor, mediante pagamento ou outra contrapartida, é punido com pena de prisão de até 3 anos. 2. Se houver penetração, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, se pena mais grave não couber por força de outra disposição.

Os artigos acima apresentados não se referem ao exercício voluntario da prostituição, o que nos permite alegar sem margem para equívoco que não configura crime a prostituição voluntaria de pessoa maior de idade, antes pelo contrário, vezes sem conta, as prostitutas é que tem visto os seus direitos violados a bel prazer dos agentes da polícia e cidadãos evasivos.

5. Modelo Emergente do Direito Penal                                        

Law | | University of Exeter

Diz-se paradigma ou modelo emergente porque ainda não está consumado, mas é o que os penalistas hodiernamente defendem, sobretudo, a escola teleológica funcional racional do Direito Penal, representada em Portugal pelo professor Figueiredo Dias.

Os modelos tradicionais de política criminal, (modelo azul e modelo vermelho e movimento de defesa social) faliram por diversas razões, sendo que, uma delas, é a sobre-utilizaçao das leis penais, criminalizando comportamentos que se quer tinham dignidade penal, monopolizando assim o sistema sancionatório criminal, outra razão é que os modelos tradicionais focavam demais no agente do crime. O que gerou efeitos perversos, pois surgiram ainda mais crimes e aumentou consideravelmente a reincidência (efeito criminogino), o faz com que alguns autores, como Rabdluch e Hulsmann defendessem a Extinção ou abolição do Direito penal, isto é, substitui-lo por algo melhor por considerarem-no incapaz de combater eficazmente o fenómeno da criminalidade.

Por seu turno, o Prof. Figueiredo Dias e Klaus Roxin, defendem uma não intervenção ou intervenção moderada ou judiciosa do Direito penal, restringindo a actuação dos órgãos responsáveis por combater o crime, utilizando também e sobretudo, mecanismos de descriminalização e diversão.

Este é o modelo emergente do Direito Penal. Pois, o Direito penal moderno, na perspectiva do Prof. Figueiredo Dias, é um Direito que protege bens jurídicos fundamentais e não moralidades, isto é, aqueles que uma vez lesados, limitam as condições comunitárias imprescindíveis ou essenciais para o livre desenvolvimento e realização da personalidade de cada individuo. Razão para dizer que, o Direito penal apenas deve estar legitimado a intervir quando se verificar lesões insuportáveis de um bem jurídico fundamental, dando lugar a ideia de descriminalização.

Na medida em que devem ser expurgados do código penal todos os comportamentos que não tenham dignidade penal, isto é, não devemos combater todos os males sociais com o Direito penal, isto faz com que o Estado se torne repressivo, como se pode certificar na obra do professor Figueiredo Dias, “As consequências jurídicas do crime”.

6. Limites da Moralidade no Direito Penal Democrático

A moralidade, é no entender de Peter Singer, filosofo e professor australiano, o conjunto de regras, princípios ou maneiras de pensar que guiam, ou chamam a si a autoridade de guiar, as acções de um grupo em particular.

Há um adágio popular que diz que tudo tem limite, fazendo jus a este, a moral também tem os seus, pois não faz sentido restringirmos direitos e liberdades fundamentais com base nos fundamentos da moral, uma vez que, a moral e o Direito actuam em campos diferentes, embora algumas vezes coincidam, não se trata da mesma realidade.

Existem tipos penais que se limitam a descrever formalmente infrações penais, independentemente de sua efetiva potencialidade lesiva, atentam contra a dignidade da pessoa humana. Nesta dinâmica, convém lembrar o entendimento de Celso Antônio Bandeira de Mello: “Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma”.

A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa ingerência contra todo o sistema, subversão dos seus valores fundamentais.

Aplicar a justiça de forma plena, e não apenas formal, implica, portanto, aliar ao ordenamento jurídico positivo a interpretação evolutiva, calcada nos costumes e nas ordens normativas locais, erigidas sobre padrões culturais, morais e sociais de determinado grupo social ou que estejam ligados ao desempenho de determinada atividade. Da dignidade humana, princípio genérico e reitor do Direito Penal, derivam outros princípios mais específicos, os quais são transportados dentro daquele princípio maior, tal como passageiros de uma embarcação.

Desta forma, do Estado Democrático de Direito origina o princípio reitor de todo o Direito Penal, que é o da dignidade humana, adequando-o ao perfil constitucional do Estado Angolano e elevando-o à categoria de Direito Penal Democrático. Da dignidade humana, por sua vez, derivam outros princípios mais específicos, os quais propiciam um controle de qualidade do tipo penal, isto é, sobre o seu conteúdo, em inúmeras situações específicas da vida concreta. Os mais importantes princípios penais derivados da dignidade humana, são eles: legalidade, insignificância, alteridade, confiança, adequação social, intervenção mínima, fragmentariedade, proporcionalidade, humanidade, necessidade e ofensividade.

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Conclusão

Após o presente trabalho de pesquisa, podemos afirmar neste artigo, que tem sido constantemente violado os direitos das profissionais de sexo, com argumentos e fundamento meramente moral. O que pode configurar crime, e uma clara violação do princípio da legalidade, patente no brocardo latino “Nullum Crimen Sine Lege” uma vez que o direito penal não serve os caprichos da moral, o principal objetivo do direito penal é a proteção dos direitos e bens jurídicos fundamentais dos cidadãos e do Estado.

Entende-se do ponto de vista jurídico, que as prostitutas como pessoas que são, carecerem de proteção legal no exercício das suas actividades, embora esta tenha uma reprovação moral social. Se por ventura o Estado angolano quiser sancionar a prostituição como crime, deve este prever e estatuir na norma penal, ou seja, deve haver um artigo no código penal angolano que configure a prática da prostituição como sendo crime (porém, ao faze-lo, levantaria outro problema jurídico, o da sobre – utilização do direito penal), deste modo, as práticas de detenção que tem sido alvo as profissionais de sexo e as suas constantes proibições são ilegais.

No geral, os clientes das prostitutas e os policiais, são os principais autores de violência contra estas profissionais, responsáveis pela maioria dos casos. De realçar ainda que muitas vezes, as trabalhadoras de sexo são vítimas de transmissão sexual de doenças de forma dolosa e intencional (este é um tema para outro momento). Num contexto em que novas políticas foram aprovadas, no caso concreto do novo Código Penal, podemos destacar a remoção do número 5º do artigo 71º que era interpretado como fundamento legal para aplicar medidas de segurança as prostitutas que sejam causa de escândalo publico ou desobedeçam continuamente as prescrições policiais. A inclusão de um artigo concreto para o lenocínio de menores e outro para simplesmente lenocínio. Nesse contexto, falar do novo código penal, é pensar novamente num contexto em que não se criminaliza a prostituição, mas sim a sua exploração.

O estudo da SCARJOV intitulado “Estudo das Condições Sociais e do Quadro Jurídico-legal das Trabalhadoras de Sexo em Angola”, foi uma das principais referências para o nosso trabalho de pesquisa, tendo em conta o contexto de trabalho de sexo em Angola. Para além de nos dar um enquadramento legal (na altura da lei de lenocínio e do Código Penal de 1886), dá-nos um quadro sobre as condições sociais do trabalho de sexo. Aliás, é assim que se referem ao trabalho de sexo, como sendo realmente um trabalho. Segundo este estudo, baseado nas 1266 entrevistas efectuadas nas 6 províncias entre outubro e dezembro de 2013, 51,1% das pessoas envolvidas diz que o trabalho de sexo não é um trabalho digno e 17,4% diz que Deus condena a comercialização do corpo. Paula Sebastião in Contexto do trabalho de sexo em Angola. Efectuado em 6 províncias (Cabinda; Huíla; Huambo; Luanda; Lunda Sul, Cunene) o estudo faz uma análise do nível de escolaridade, o ambiente familiar, os desafios da actividade do trabalho de sexo, as questões de saúde e a relação com a polícia. Recomendamos vivamente a leitura do mesmo. Por fim, concluímos com a seguinte citação de Celso António Bandeira de Mello: “Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma”.


[1] Um dos pontos que o estudo faz é a ligação entre a não criminalização da prostituição no contexto Angolano. Porém, muito se fala do trabalho de sexo como crime, dentre as várias normas que existiam, o artigo 71º do código penal anterior, era um que no seu número 5º reforçava a interpretação de que a prostituição voluntaria era criminalizada, podendo mesmo aplicar-se uma medida de segurança as prostitutas. Essa interpretação é, no entanto, posta em causa neste estudo, que argumenta a inexistência de uma norma legal que condene a prostituição, pois o que é criminalizado é a exploração sexual e o exercício de promoção ou facilitação da actividade, com o intuito de lucro. Este é o crime de lenocínio. Ou seja, é crime quando alguém faz uma exploração do trabalho de sexo, no entanto, isto nos leva a um debate sobre o consentimento, tendo em conta que são muita as pessoas, (homens, mulheres e homossexuais que consentem em realizar a prostituição. O estudo deixa claro que na maioria dos casos não encontraram profissionais de sexo forçadas/os a exercer a actividade, mas sim foi resultado de condições socio-económicas. O estudo indica que 54,4% das mulheres prostitutas apontaram dificuldades de vida como uma das principais razões para o exercício da profissão, 14,4% indicam ter sido o abandono escolar, 7,6% alegam que os esposos não suportam os encargos financeiros familiares, 4,4% afirmam que a família assim quis e 10,7% por não terem ocupação. Ou seja, a maioria responde que foram as necessidades que as levaram a exercer a actividade. Isto reforça a necessidade de falarmos em momento oportuno sobre a violência económica, sobre o lugar da mulher no acesso ao emprego, sobre a educação para a melhoria da condição económica e como a não resposta estrutural a estas questões exige que algumas mulheres recorram ao trabalho de sexo (prostituição) como única resposta para alimentar os seus filhos. Paula Sebastião, in contexto do trabalho de sexo em Angola, p. 38, Políticas Públicas.

[2] Não passam de mera ficção as teorias correntes nos séculos XVII a XIX de que o homem começou por viver isolado num estado de natureza que teria precedido o estado social. Referimo-nos a Hobbes para quem o homem é um ser profundamente egoísta que a sociedade educa e a Rousseau que vê no homem um ser originariamente bom que a civilização corrompeu. A sociabilidade inata do homem e as modernas investigações antropológicas desmentem aquelas doutrinas.

[3] Vide José de Oliveira Ascensão. O direito. Introdução e Teoria Geral, Coimbra, 2005. Miguel Teixeira de Sousa. Introdução ao Direito, Almedina. Coimbra, 2012. 

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