É CRIME EMITIR OU NEGOCIAR CRIPTOMOEDAS?[1]
Hélia Pimentel[2]
Tal como o dinheiro começou sob a forma de uma pedra (com peso e medidas diferentes) e evoluiu para o sal, papel, cartões eletrónicos e criptomoedas, o sistema financeiro também teve as suas transformações, porém não muito ousadas como foi o da moeda.
Imagine como foi, para a sociedade daquela época, a mudança da substituição do uso do ouro por um pedaço de papel que tinha também o mesmo valor económico nas trocas comerciais? Quantos confiaram na mudança e na sua viabilidade? O certo é que hoje, temos várias formas de pagamentos que já não implicam o uso do cash. Hoje recebemos os pagamentos via transferência bancária e voltamos a usar o valor recebido por via do mesmo processo, sem nunca termos em mãos, em algum momento, o dinheiro.
Importa referir que a moeda tem três funções tradicionais, “a qual é, ao mesmo tempo, meio de troca, unidade de valor e reserva de valor.”[3]
O sistema financeiro corresponde ao conjunto de instituições financeiras públicas ou privadas que permitem as transações económicas, usando o dinheiro, mediante sistemas de pagamento, sistemas de financiamento e da gestão de riscos.
“Todo o país tem uma moeda e um Sistema Monetário, normalmente controlado por um Banco Central, que exerce um poder de regulamentação da quantidade do meio circulante, custo do dinheiro e disponibilidade de crédito do sistema bancário para financiar as diversas transações diárias.
O Banco Central é uma instituição financeira governamental que atua como o “banco dos bancos” e tem como prioridade a estabilidade da moeda e o controle do crédito num país. Cabe a esta instituição, o monopólio da emissão de papel-moeda, a fiscalização e controle dos demais bancos públicos e privados e a responsabilidade de administrar as reservas nacionais em ouro e moedas estrangeiras.”[4]
“O sistema financeiro é um dos pilares do desenvolvimento económico das sociedades: por um lado, as empresas optam por determinados projectos de investimento e formas de assegurar o respectivo financiamento e, por outro, os consumidores tomam decisões sobre a afectação do seu rendimento disponível entre poupança e consumo.”[5]
A Constituição da República de Angola, no seu art. 99.º, diz que o sistema financeiro é organizado por forma a garantir a formação, a captação, a capitalização e a segurança das poupanças, assim como a mobilização e a aplicação dos recursos financeiros necessários ao desenvolvimento económico e social, e que todo este processo deve ser regulado por lei.
A mesma lei, no seu art.º 100.º, vem atribuir ao Banco Nacional de Angola a missão principal de garantir a estabilidade do sistema financeiro, tal como também a define como a única entidade financeira autorizada para a emissão da moeda.
Agora que já percorremos, de forma breve, sobre o sistema financeiro, importa agora falarmos sobre as Finanças Descentralizadas, comummente designada por DeFi.
O que são Finanças Descentralizadas ou DeFi?
Para percebermos o conceito de DeFi, é preciso entendermos o conceito de criptomoedas e ethereum.
Criptomoedas ou cibermoedas é um meio de troca, podendo ser centralizado ou descentralizado que se utiliza da tecnologia de blockchain e da criptografia para assegurar a validade das transações e a criação de novas unidades da moeda[6], isto é, a criptomoeda é uma moeda totalmente digital, não emitida por nenhum governo.
Se as criptomoedas não passam por nenhuma entidade central governamental, como é feita a sua emissão, reserva e fiscalização? Vamos tentar encontrar as respostas ao longo do texto.
Quando falamos sobre emissão de criptomoedas, estamos perante a um processo de mineração (como a mineração do carvão ou do ouro, por exemplo) que congrega cerca de 75% de energia[7] e outros pela internet e processo de validação tecnológica[8].
A emissão das criptomoedas está longe de estar sob o controlo do Banco Nacional de Angola ou qualquer outro Banco Central, pois ela é a moeda da internet. Mas então, vale a pena usarmos esta moeda no mercado angolano? Eu respondo com outra pergunta, se não emitimos o dólar, a libra e outras moedas estrangeiras, porque são permitidas nas trocas comerciais em Angola?
Pelos vistos, o facto de não emitirmos a moeda, não representa impossibilidade de a usarmos.
Ethereum é uma tecnologia que abriga dinheiro digital, pagamentos globais e aplicativos. A comunidade construiu uma economia digital em expansão, novas formas ousadas de os criadores ganharem online e muito mais. Está aberto a todos, em qualquer parte do mundo – tudo que precisa é da Internet.[9]
DeFi é um termo coletivo para produtos e serviços financeiros que são acessíveis a qualquer pessoa que possa usar o Ethereum.[10] Qualquer pessoa com uma conexão à Internet pode fazer uso dos produtos e serviços financeiros cem por cento digitais, sem qualquer intervenção de terceiros, é um P2P[11].
P2P, ou peer-to-peer/ponto a ponto, é um tipo de rede de computadores frequentemente usada para a distribuição de arquivos de mídia digital. Isto é, cada computador atua como servidor e cliente – fornecendo e recebendo arquivos – com largura de banda e processamento distribuídos entre todos os membros da rede. Essa rede descentralizada usa recursos com mais eficiência do que uma rede tradicional e é menos vulnerável a falhas sistémicas. As redes P2P são usadas por aparelhos eletrónicos com Bluetooth e serviços de comunicação baseados na Internet, mas o desenvolvimento tem sido amplamente impulsionado pelo compartilhamento de arquivos online.[12]
Com DeFi, os mercados estão sempre abertos e não há autoridades centralizadas que podem bloquear pagamentos ou negar acesso a qualquer coisa. Serviços que antes eram lentos e apresentavam risco de erro humano são automáticos e mais seguros agora que são controlados por um código que qualquer pessoa pode inspecionar e examinar.
Eis, abaixo, algumas diferenças entre o sistema financeiro centralizado e as Finanças Descentralizadas:
Finanças Centralizadas | Finanças Descentralizadas |
O dinheiro é mantido/gerido por uma instituição bancária. | O dinheiro do sujeito é gerido por ele mesmo. |
O proprietário do dinheiro tem de confiar nos bancos pois estes têm o compromisso de não administrarem mal o seu dinheiro, como também permitir que os mesmos usem para tomadores de empréstimos arriscados. | O proprietário do dinheiro controla onde e como é gasto o seu dinheiro. |
Os pagamentos podem demorar dias devido a processos manuais. | A transferência de fundos acontece em minutos. |
A atividade financeira está intimamente ligada à identidade pessoal do proprietário do dinheiro. | A atividade de transação é um pseudónimo/nome fictício. |
Obrigatoriedade em fazer subscrição/adesão para ter acesso aos serviços financeiros. | DeFi está aberto para qualquer pessoa, basta ter acesso à internet. |
O mercado fecha porque os funcionários precisam de descansar. | O mercado está sempre aberto. |
As instituições financeiras são livros fechados: você não pode pedir informações sobre o seu banco (histórico de empréstimos, um registro de ativos administrados e assim por diante). | Ele é baseado na transparência na informação – qualquer pessoa pode ver os dados de um produto e inspecionar como o sistema funciona. |
Sem regulador no DeFi, como proteger os consumidores?
Tendo o usuário a liberdade para emitir a moeda, decidir o que comprar, quando e quanto comprar, sem qualquer intervenção de um regulador, como fica a proteção do mesmo face à possíveis golpes?
Se o usuário é que tem toda a liberdade para emitir e fazer todas as operações financeiras, este assume todo o risco dos seus atos e não poderá chamar a responsabilidade do Estado pelas suas possíveis perdas.
É crime emitir criptomoedas?
É importante termos em conta, quanto à emissão de moedas, o Código Penal Angolano, no seu art.º 255.º define a moeda como sendo o papel-moeda, constituído pelas notas de banco e pela moeda metálica com curso legal, quer em Angola, quer no estrangeiro e os bilhetes e respectivas fracções da lotaria nacional, também equiparados à moeda.
Pela definição que consta nesta norma, podemos notar a não previsão das moedas digitais, vulgo criptomoedas. Se as moedas digitais não estão previstas na lei, constitui crime emitir uma criptomoeda? Com base no Princípio da Legalidade, nos termos do art.º 1.º do Código Penal Angolano, só pode ser punido criminalmente o facto descrito e declarado passível de pena por lei anterior ao momento da sua prática. As moedas digitais estão descritas em alguma lei angolana?
O mesmo código, no seu art.º 256.º, considera como crime de Contrafacção de Moeda[13] a fabricação da moeda, imitando a verdadeira, com o propósito de a passar ou colocar em circulação é punido com pena de prisão de 2 a 12 anos. Se o conceito de moeda, constante no Código Penal Angolano, não menciona as moedas digitais, acreditamos que nem se pode chamar o crime de contrafação de moeda, até porque o processo de mineração das criptomoedas não se baseia na imitação, mas sim na produção original da moeda (digital).
Ainda sobre a regulação, importa referir que o Código de Valores Mobiliários[14], na al. q) do art.º 2.º, elenca os ativos que devem ser considerados como valores mobiliários e as moedas digitais também não foram contempladas neste diploma.
É crime negociar criptomoedas?
Não existindo regulação das criptomoedas, não há limitação para sua negociação. Assim, a negociação, por si só, de criptomoedas não constitui crime contra o Sistema Financeiro angolano, isto é, se deseja usar seu próprio dinheiro para comprar e vender bitcoins, por exemplo, não há ilegalidade nisso. Contudo, se usar dinheiro de terceiros sem registro para isso, constituirá num crime, pois estará sob o vínculo de um Contrato de Investimento Coletivo.
Quem se compromete a investir o dinheiro de terceiros realiza um contrato de investimento coletivo (CIC). O CIC serve para captação de recursos do público investidor, aplicando-os em determinado empreendimento (ouro, dólar, criptomoeda). O empreendedor gerencia o investimento com a promessa de distribuir entre os investidores os lucros do empreendimento.
Embora as criptomoedas não sejam valor mobiliário, o contrato de investimento coletivo é uma espécie de valor mobiliário[15]. Aqui sim, podemos falar de um possível crime, não pela negociação direta feita pelo usuário, mas sim de um organismo que o faça sem os devidos requisitos legais.
Em Angola, o contrato de investimento coletivo é regulado pelo Decreto Presidencial n.º 7/13, de 11 de outubro, regidos pelos Organismos de Investimentos Coletivo (OIC).
Pensa em comprar alguma criptomoeda? A decisão é sua, contudo, não se esqueça que o risco também é todo seu.
Hélia Pimentel, Luanda, 24 de Setembro de 2021.
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[1] Artigo escrito com base no acordo ortográfico.
[2] Economista.
[3] SILVA, Paulo Roberto da. “Origem e Desenvolvimento do Sistema Financeiro Internacional: do Padrão-ouro à crise de 2008”, Dissertação de Mestrado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 16.
[4] Idem.
[5] SANTOS, Fernando Teixeira dos. “O Sistema Financeiro e a Globalização: A Regulação do Sistema Financeiro”, Conferência IDEFE-ISEG, Faculdade de Economia da Universidade do Porto, 17 de Junho de 2002, p. 2.
[6] InfoMoney, https://www.infomoney.com.br/guias/criptomoedas/
[7] Forbes Brasil, https://forbes.com.br/forbes-money/2021/06/cripto-revolucao-argentina/
[8] Canal Tech Brasil, https://canaltech.com.br/criptomoedas/como-funciona-a-mineracao-do-bitcoin-191213/
[9] Ethereum, https://ethereum.org/en/
[10] Idem.
[11] Ponto a ponto.
[12] Britannica, https://www.britannica.com/technology/P2P
[13] Código Penal Angolano, Lexdata, 1ª edição, 2020, p. 109.
[14] Lei n.º 22/15, de 31 de agosto, Lei que aprova o Código dos Valores Mobiliários.
[15] Marello Legal https://marello.legal/novidades/crime-bitcoin-criptomoeda-piramide-estelionato-investimento
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