Leandro E. G. Ferreira, Facebook
Todos os anos, nas aulas ministradas aos meus alunos de Direito Administrativo, no 2.º ano curricular, advirto que o sistema de organização da Administração é muito influenciado pela qualidade e abertura da democracia em que é implantada e a fixação da natureza das pessoas colectivas públicas funciona como um pêndulo, ora à esquerda, ora mais à direita, entre uma democracia mais aberta ou de um regime menos democrático, facilmente moldadas pelas conjunturas de cada momento.
Os modelos escolhidos para criar e posicionar as outras pessoas colectivas públicas além do Estado (como são os institutos públicos, empresas públicas, autarquias locais, outras modalidades colectivas de participação dos cidadãos com personalidade jurídica, as agências reguladoras e os demais entes independentes – quiça também a dimensão colectiva das instituições do poder tradicional) são bastante dependentes dos interesses de sistema que definem a necessidade de maior, menor ou nenhum controlo sobre tais instituições. Onde há menos democracia, há mais controlo e dá-se preferência a formatos mais próximos do Estado, ao nível da Administração Indirecta (como são os institutos públicos e suas subespécies); onde há mais democracia, há menos controlo e evolui-se para formatos cada vez mais longínquos do Estado, podendo chegar à total independência (Administração Independente).
A recente proposta de revisão constitucional apresenta novidades sobre estas matérias. Sinaliza uma maior abertura para as formas de administração independente, com a inserção do artigo 198.º-A, a imposição de uma relação de “cooperação” com o Executivo e as modificações no artigo 199.º (prenunciando a transferência das agências reguladoras para aí, colocação que já era reclamada havia bastante tempo, no domínio dos vários regimes que vigoraram sobre os institutos públicos). Reconhece o BNA como instituição administrativa independente (artigo 100.º) e estabelece a designação do Governador pelo PR, após parecer não vinculativo da Assembleia Nacional. Clarifica as formas de autonomia autárquica e a sua extensão às outras espécies organizativas do poder local (artigo 214.º) e, por fim, sem prejuízo de outras de menor importância, cria especificamente a tutela de mérito na alínea d) do artigo 120.º dentro dos poderes do PR.
Entre o paralelismo efectivo e um modelo de subordinação mitigada, com interferência na gestão interna, surgem, em primeiro lugar, opções políticas que ajustam e vão reposicionando tais entidades para melhor. O BNA é a mais expressiva demonstração dessa abertura, ao passar de uma instituição de estatuto dúbio (administração indirecta supostamente independente) para inequívoca natureza independente (ao menos assim se pretende).
Quanto a esta instituição, como em relação às demais independentes, não temos dúvidas dos ganhos a alcançar, afinal este é dos maiores impasses institucionais no funcionamento do sistema financeiro. A abertura deve ser expressiva e não contida, ainda que se sustente um menor impacto do formato de designação dos seus governos, perante uma cultura organizacional dirigida à supressão e consentimento de interferências. De nada adiantará conferir independência ao BNA e a outras instituições independentes enquanto não se assegurar um sistema rigoroso e apertado de controlo do conflito de interesses, do tráfico de influências e das interferências político-executivo-partidárias sobre o Governador e seus “subalternos” ou os titulares destoutras entidades administrativas com igual estatuto, com os indirectos e tradicionais pedidos de apresentação de demissão, as sessões de trabalho comum provocadoras de dependência (mesmo que venham a ser chamadas de cooperação), etc.
A independência deve significar um voto de confiança constitucional e legislativo sobre o patriotismo, o compromisso, a prossecução do interesse público, a defesa do bem comum por parte de cada uma desta espécie de instituições, deixando-se estas com a liberdade efectiva de regerem e gerirem os assuntos e atribuições a seu cargo, sem necessidade de válvulas de escape.
Em segundo lugar, quanto à Administração autónoma, a questão volta a colocar-se em sede da tutela administrativa, o tal poder de interferência na gestão de outra pessoa colectiva autónoma – autorizando ou aprovando os seus actos, ou, excepcionalmente, modificando-os, revogando-os, suspendendo-os, fiscalizando os seus serviços ou suprindo a omissão dos seus deveres legais.
A CRA possui muitas insuficiências e incongruências nessa matéria, dizendo muito pouco sobre este instituto e a reforma agora em curso não lhe dá resposta suficiente. Desde muito cedo, revelou-se problemática a questão da definição do âmbito e conteúdo da tutela administrativa na alínea d) do artigo 120.º; primeiro, pela necessidade de compatibilização entre esta norma com os artigos 213.º a 227.º; segundo, atento à aparente contradição entre os artigos 221.º e 242.º. A reforma agora proposta elimina o n.º 1 e altera o n.º 2 do artigo 242.º. Edita em especial a alínea d) do artigo 120.º, para acrescentar aí uma nova figura, não mais transitória (que implicava a sua evolução, redução e, por fim, extinção), mas agora para a tornar permanente: a tutela de mérito.
O resultado é o agravamento do problema constitucional (mesmo perante os esforços da Lei n.º 21/19). Constata-se existirem normas constitucionais reguladoras da tutela administrativa sobre as autarquias locais, nada se dispondo quanto às outras espécies de poder autónomo, com ou sem personalidade jurídica colectiva. Questiona(va)-se se, em relação a estas, são extensíveis as disposições da tutela administrativa das autarquias locais ou se a omissão de normas identifica a intenção constitucional de não condicionar o desempenho destas formas de poder local ao crivo tutelar, com base no princípio de que “a tutela só existirá quando prevista em norma”.
Quanto ao objecto, existem(existiam) também dúvidas sobre saber se a tutela administrativa sobre o poder local em Angola consiste apenas na tutela de legalidade ou será também uma tutela de mérito, tal como pretendido pela recente legislação autárquica ordinária (parece legitimado temporariamente pelo n.º 2 do artigo 242.º).
Estando apenas no capítulo referente às normas transitórias, a interpretação que se fazia era a de que a tutela de mérito só podia ser admitida no processo de transição entre o estadio de exclusividade da Administração Local do Estado para o da materialização efectiva das autarquias locais, com o alargamento gradual das atribuições destas, bem como dos recursos financeiros postos à sua disposição.
Num quadro definitivo, o dispositivo constitucional só admitiria a tutela de legalidade inspectiva para o poder local. Isso di-lo igualmente o Acórdão n.º 314/2013 do Tribunal Constitucional: «na Constituição, esta tutela é evidentemente de legalidade, se falarmos das autarquias locais, atento ao disposto no n.º 2 do artigo 213.º e nos artigos 214.º, 215.º e 221.º. Ao dispor a Constituição que a tutela visará a “verificação do cumprimento da lei” (n.º 2 do artigo 221.º), consagrou uma tutela inspectiva, recusando as demais formas, mais agressivas, de intervenção na gestão dos organismos que integram o poder local».
A alteração indicada nesta alínea d) do artigo 120.º poderá servir para legitimar níveis excessivos e permanentes de intervenção sobre as autarquias locais, com prejuízo sobre a democraticidade do seu funcionamento. Sendo uma norma atributiva de poderes de tutela de mérito, a sua ratio contende com a lição daquele acórdão que, interpretando a actual Constituição, recusa formas mais agravadas de interferência sobre as demais espécies de administração autónoma, quando comparadas com as autarquias.
Então há que perguntar se estamos perante uma nova opção constitucional sobre a matéria. A CRA é e será lei fundamental, devendo ser cumprida e respeitada por todos. Isso tem de ser claro.
Não esqueçamos que disse o Tribunal Constitucional, em obter dictum, que «a legislação ordinária apenas pode prever uma tutela de legalidade inspectiva…, porquanto, a fortiori, ela é estabelecida como limite para as autarquias locais e não pode reforçar-se para entidades com uma genética mais próxima do direito privado e com poderes públicos menores comparativamente àquelas» (acórdão 314/2013), como é o caso genérico das instituições e autoridades do poder tradicional e as outras modalidades do poder tradicional. O Tribunal refere que a tutela é evidentemente de legalidade, se falarmos das autarquias locais, atento ao disposto no n.º 2 do artigo 213.º e nos artigos 214.º, 215.º e 221.º. Reforça que a CRA consagrou uma tutela inspectiva, recusando as demais formas, mais agressivas, de intervenção na gestão dos organismos que integram o poder local, afirmando que «pode mesmo dizer-se que, no domínio dos actuais marcos do poder autónomo, as modalidades de tutela integrativa, sancionatória, substitutiva e revogatória são formas perdidas e ultrapassadas de intervenção tutelar sobre organismos dotados de tal natureza, sendo apenas realizáveis por meio de acções a intentar em tribunais».
Há, por conseguinte, que considerar uma de duas hipóteses: adopta-se uma opção política constitucional clara e permanente pelo estabelecimento da tutela de mérito (com a necessidade de alteração do artigo 221.º, não bastando inserir a tutela de mérito na alínea d) do artigo 120.º, ainda que criticável pela sua menor democraticidade) ou, em sentido inverso, alinhar com o entendimento que defende o nível máximo de tutela de legalidade inspectiva sobre todas as formas de Administração autónoma, suprimindo a tutela de mérito da CRA e da presente reforma.
Veremos o que dirá o texto final da Constituição, a sua concretização legislativa posterior e a forma como a intenção de abertura democrática irá moldar tal solução. Como dizia o Tribunal Constitucional no acórdão 314/2013, com suporte em autoridade doutrinária relevante: «não é obrigatória a tutela governamental sobre a administração autónoma, podendo a lei dispensá-la» ou, quando prevista, o Executivo não a exercer.
Esperemos!
Leandro E. G. Ferreira, Mestre em Direito.
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