Em Maio de 2020, após alguns meses de confinamento e reflexões jurídicas decorrentes das medidas impostas pelo combate à covid-19, demos uma entrevista para o Jornal de Angola, onde, no último parágrafo, dizíamos que, em Angola e no resto do mundo, «as Constituições deviam ser ajustadas para prever outras formas de “condicionamento de direitos e normas” previstos na Constituição ou em Lei, de modo a acolher formas mais adequadas e manuseáveis de combater ou responder às ameaças naturais e humanas da vida em sociedade, sobretudo quando tendem a ser permanentes» ( https://jornaldeangola.ao/…/leandro-ferreira-a…/ ).
A nossa sugestão era objectiva: «além do estado de guerra, estado de sítio, estado de emergência, podiam ser acolhidas as situações de catástrofe, de calamidade e o estado de necessidade administrativa, cuja menor gravidade das causas dispense a necessidade de audição e controlo regular do órgão parlamentar, tal como acontece naquelas três primeiras formas».
Era preciso capacitar juridicamente e de forma mais adequada o respeitável trabalho desenvolvido pelo Executivo, perante a desafiante e incontornável decisão de proteger vidas, por um lado, e salvaguardar a ordem constitucional, por outro. Mas alertávamos que a “situação de calamidade/catástrofe” era uma realidade que «tinha de ser a Constituição a autorizar e não um acto legislativo», ao contrário do que se realizou no nosso país em todos os meses que se seguiram, sob a sombra da Lei da Protecção Civil alterada.
Quem a acompanhou lembra-se certamente que a opinião de jornal foi motivada pela modificação da Lei da Protecção Civil, que visava alargar o conceito de calamidade pública e retirar a necessidade de intervenção fiscalizadora parlamentar, sob o argumento de aplicação de um regime estritamente infraconstitucional. Os fundamentos do que me parecia ser uma inconstitucionalidade foram expostos em quantidade bastante nessa matéria jornalística.
As reacções foram as mais diversas e interessantes. Além das esperadas simpatias, existiram também as habituais censuras, vindas de vários sectores, algumas contundentes, de forma expressa ou velada, afinal estava a ser proposta essa solução num dos campos mais sensíveis da ciência jurídica constitucional, que não tem paralelo noutras partes do mundo, não tínhamos ainda tido a oportunidade de replicar de outras realidades e, sobretudo, porque questionava uma opção presidencial, no quadro difícil de resposta à covid. Também se disse não ser cauteloso e cientificamente prudente ou amadurecido; algo que, na opinião actual de um colega e meu amigo (acompanhado aqui e acolá por muitos compatriotas preocupados com a liberdade da crítica científica pura), seriam qualificadas como opiniões/sugestões precipitadas e não ponderadas, iguais àquelas que o próprio qualifica como “quimbandaria jurídica, com manifestações de chinguilamento, tudo motivado por sentimentos madoístas na busca de algum showismo”. Nada mais lúdico, valendo, com justiça, para um bom sorriso!
Em Angola e no resto do mundo, a Covid-19 permitiu à ciência jurídico-política (doutrinária, jurisprudencial e legislativa) uma crítica profunda ao âmbito e regime das formas de estados de necessidade constitucional (estado de guerra, estado de sítio e estado de emergência, este último em regra fundado em circunstância de calamidade pública). Reparou-se que o conceito actual de calamidade é bastante amplo, escapa à noção constitucional tradicional do estado de excepção (habitualmente ligadas a situações graves, susceptíveis de criarem crises políticas e sociais, com subversão da ordem constitucional instituída, cuja reacção corrente seja a suspensão de disposições constitucionais, impondo assim a necessidade de serem fiscalizadas pelo parlamento). Disso advertimos na altura.
A aprovação da alteração à Lei da Protecção Civil foi feliz com a modificação conceitual trazida (o que mereceu o nosso elogio), susceptível de incluir eventos graves de origem natural, tecnológica, sanitária ou catástrofe, de duração prolongada no tempo, que podem afectar a saúde pública, as condições de vida dos cidadãos, a economia, com enormes prejuízos materiais e perda de vidas humanas; ou seja, trataram-se de elementos mais vastos e precisos do que era inicialmente indicado de forma genérica nos artigos 2.º e 4.º da Lei n.º 17/91, e onde se verificava existir menor risco de crises políticas e sociais, com eventual subversão da ordem (por conseguinte, com menor necessidade de fiscalização parlamentar). Mas, conforme, alertávamos na altura, «a solução só tentou equilibrar interesses, visou não colocar os parlamentares contra o desafio de protecção de vida dos cidadãos, mas não resolveu o problema jurídico a jusante, antes tendo adiado a situação que acabaria, mais cedo ou mais tarde, por ter que ser revista pela Assembleia Nacional, mediante a revisão da CRA».
No dia 2 de Março de 2021, o Ministro de Estado e Chefe da Casa Civil coincidentemente proferia as palavras mágicas dessa pertinente proposta incluída na iniciativa de revisão constitucional: “inserir na Constituição a situação de calamidade, um mecanismo não já de suspensão, mas de mero condicionamento do exercício de direitos e normas previstos na Constituição, solução que será inovadora e provavelmente pioneira a nível mundial”, ouvindo-se a AN apenas na primeira declaração, sendo dispensada nas seguintes, ao contrário do que é regime nos tradicionais estados de excepção constitucional. Diz o relatório de fundamentação da proposta (para o novo artigo 58.º-A) que «para além de outros factores, a pandemia provocada pela COVID-19 veio demonstrar a existência de uma realidade para a qual a CRA não está preparada para responder; a situação anómala é de duração imprevisível e a sua abordagem pode requerer medidas que, não indo ao ponto de suspender direitos fundamentais, determinam “condições” para o seu exercício; isto é, os direitos fundamentais continuam a ser exercidos, embora “condicionados” a certos factores».
Quem diria que, volvidos estes meses, o tempo daria razão àquela “quimbandaria jurídica”, confirmando a importância e necessidade de tal solução na CRA, inovadora a nível mundial ou, pelo menos, rara noutros contextos!!??
Leandro E. G. Ferreira, Mestre em Direito
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