Ndombele ANTÓNIO[1]
Jurista, Licenciado pela Faculdade de Direito da Unikivi na opção Jurídico-Económica.
INTRODUÇÃO
O incidente de qualificação de insolvência é um instituto jurídico autonomizado[2] introduzido e regulado pelo Regime Jurídico da Recuperação de Empresas e da Insolvência.
O incidente tem por finalidade a qualificação da insolvência como culposa ou como fortuita, que poderá ter efeitos de apreciação da responsabilidade civil[3] e criminal[4]
Deste ponto de vista, a conduta do devedor insolvente, dos titulares de empresa e dos administradores de direito ou de facto, é um elemento imperioso para a qualificação da insolvência como fortuita ou como culposa. Contudo, a apreciação de tal conduta tem que ter em conta dois factores: há que averiguar se esta contribuiu ou agravou a situação de insolvência e se os actos danosos foram praticados com dolo ou com culpa grave e, é apenas nestes casos, deverá a insolvência ser qualificada como culposa, implicando, consequentemente, uma série de efeitos para as pessoas afectadas[5]
A INSOLVÊNCIA CULPOSA
O Regime Jurídico da Recuperação de Empresas e da Insolvência, estabelece duas modalidades de insolvência: a culposa e a fortuita. Considera-se por insolvência culposa aquela que foi criada ou agravada pelo administrador de facto[6] ou de direito do devedor quando a actuação seja dolosa ou culposa e desde que tal conduta se tenha verificado nos dois anos anteriores ao início do processo da insolvência[7].
Saliente-se que, tanto na doutrina entre os quais Menezes Leitão[8] e Rui Estrela de Oliveira[9], apontam como necessário, para se qualificar a insolvência como culposa, o preenchimento do nexo de causalidade entre actuação dolosa, acção ou omissão, com culpa grave do devedor-administrador (art.º 105.º nº 1) e a situação de insolvência.
O nº 2 do art.º 104.º define o conceito de insolvência culposa, porém, persistindo dúvidas, o nº 1 do artigo 105º estabelece algumas situações em que a insolvência será sempre havida como culposa [10]. Além do mais, é sempre necessário que o devedor ou os administradores de facto ou de direito tenham praticado, nos dois anos anteriores ao início do processo,[11] algum dos actos previstos nas alíneas a) e i) do nº 1 do 105º do Regime Jurídico sobre a Recuperação de Empresas e da Insolvência.
Nesta perspectiva,[12] as alíneas do nº 1 do art.º 105.º podem dividir-se em três grupos: o primeiro consagra actos que afectem, no todo ou em parte considerável, o património do devedor als. a) e c); o segundo diz respeito aos actos que, prejudicando a situação patrimonial, em simultâneo trazem benefícios para o administrador que os pratica ou para terceiros als. b), d), e), f) e g)) e um terceiro grupo que consagra o incumprimento de certas obrigações legais als. h) e i).
Para Rui Estrela Oliveira[13], o nº 1 do art.º 105º consagra um sistema de imputação semi-objectivo, definindo causas puramente objectivas e causas semi-objectivas da insolvência culposa. Ainda de acordo com o autor, caso as várias alíneas do nº 1 se dêem por provadas, a insolvência tem de ser qualificada como culposa, não se admitindo prova em contrário (art.º 350º, nº 2 do CC).
Por sua vez, o nº 3 consagra presunções iuris tantum, isto é, presunções ilidíveis que podem ser afastadas mediante prova em contrário[14] (nos termos do nº 2 do art.º 350º do CC). Contudo, nestes casos, a insolvência só poderá ser qualificada como culposa se estiver preenchida, ou seja, caso se verifique a culpa grave[15]. Seguindo a orientação dos autores supra citados, Catarina Serra defende que a qualificação da insolvência como culposa necessita da verificação da existência de um nexo de causalidade entre o facto e o dano. Porém, acrescenta esta Autora que haverá casos em que a presunção de culpa do art.º 105º, nº 1 do Regime Jurídico de Recuperação de Empresas e da Insolvência não será afastada com base no art.º 350º, nº 2 do CC.[16]
Não o sendo, presume-se a culpa dos administradores de direito ou de facto, nos casos em que o devedor não é pessoa singular, quando não tenham respeitado as als. a) e b) do nº 1. Caso a insolvência seja qualificada como culposa,[17] desencadeia os efeitos previstos no art.º 110º, nº 3 als. b), c) e d) do da lei supra citada[18]: inabilitação das pessoas afectadas por um período de 2 a 5 anos” (al. b), nº 3 do art.º 110º; decretar essas pessoas inibidas para o exercício do comércio durante um período de 2 a 5 anos, bem como, para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa (al. c) do nº 3 do art.º 110º; determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelas pessoas afectadas pela qualificação e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos, al. d) do nº 3 do art.º 110.º). Estes efeitos são decretados na própria sentença de qualificação de insolvência como culposa[19].
Em contrapartida, a insolvência fortuita não se encontra definida na Lei. Dada a ausência de uma definição legal, poderá entender-se que a insolvência fortuita será toda aquela que não for considerada insolvência culposa nos termos do art.º 104º, nº 2 in fine, da Lei n.º 13∕21.
TIPOS DE INCIDENTES
O incidente da qualificação da insolvência encontra-se regulado na secção II do capítulos V do Regime Jurídico Sobre a Recuperação de Empresas e da Insolvência nos artigos 104º a 154º. O incidente é aberto na sentença que declara a insolvência, nos termos do art.º 146º, al. i), independentemente do sujeito, mesmo nos casos de encerramento do processo por insuficiência da massa, denominado incidente limitado.
Na sentença declarativa da insolvência, o juiz fixa o carácter pleno ou limitado do incidente de qualificação[20]. O incidente limitado reporta-se às situações em que existe insuficiência patrimonial do insolvente para satisfazer as suas dívidas da massa, art.º 149º do Regime Jurídico Sobre a Recuperação de Empresas e da Insolvência e é, em regra, aplicado apenas em dois casos previstos nos art.s 146º, nº 1 al a) d) e h).
A finalidade do incidente consiste em verificar se a situação de insolvência ocorreu de forma fortuita ou se, em vez disso, se deveu à actuação dolosa, ou culposa do devedor.
O INCIDENTE PLENO
Âmbito de aplicação
Na sentença de declaração de insolvência é declarado aberto o incidente, por força do art.º 146º, al. i). Tal como tivemos oportunidade de referir, o incidente pleno é a regra, ficando o incidente limitado reservado às situações excepcionais previstas no art.º 111º, nº 1 da Lei n.º 13∕21 de 10 de Maio.
Os trâmites do incidente pleno encontram-se presentes nos art.s 106º e 110º do Regime Jurídico sobre a Recuperação de Empresas e da Insolvência.
Tramitação
Aberto o incidente para averiguar se a insolvência é, ou não, culposa, qualquer interessado pode alegar, por escrito, factos que considere relevantes para qualificação de insolvência como culposa, até dez dias depois da realização da Assembleia de Credores, artigo 106º, nº 2.
Seguidamente, e de acordo com o disposto no nº 2, do art. 106º, o administrador de insolvência podem fundamentar e o oferecer a prova do conhecimento superveniente dos fundamentos invocados, devidamente fundamentado e documentado, sobre os factos que contribuíram para a situação de insolvência culposa, referindo ainda quais as pessoas que podem vir a ser afectadas pela qualificação.
O incidente de qualificação da insolvência como culposa ou fortuita, o juiz manda notificar o devedor e citar pessoalmente aqueles que se considerem afectados pela qualificação, beneficiando estes de um prazo de 15 dias para se oporem, art.º 108º, nº 5[21]. Tanto o MP como o administrador ou mesmo qualquer interessado que não concorde com a oposição, podem responder num prazo de 10 dias, art.º 108º, nº 7.
Acrescente-se, por fim, que a Lei 13∕21 de 10 de Maio não regula directamente a fase subsequente, seguindo-se, então, com as devidas adaptações, a tramitação dos art.s 108º a 106º, por remissão do nº 7 do art.º 108º que dará origem ao parecer da comissão de credores.
O INCIDENTE LIMITADO
Âmbito de aplicação
O incidente limitado de qualificação da insolvência encontra-se regulado no art.º 111º da Lei n.º 13∕21 de 10 de Maio. Por força do nº 1 do art.º 149º percebe-se que ao incidente limitado também se aplicam as normas do incidente pleno, arts 108º e 110º com excepção da al. d), do nº 3 do mesmo artigo. Contudo, o incidente limitado goza de um regime legal específico, arts 106º, nº 1.
Nos termos do art.º 106º, nº 1, quando o juiz conclua, no decurso do processo, pela insuficiência da massa insolvente deve logo fazer constar da sentença, que declara a insolvência, que o incidente deve ser aberto como limitado[22].
Se o juiz não reunir elementos bastantes, deve o incidente seguir com carácter pleno[23].
Tramitação
Os trâmites do incidente limitado regem-se pelos arts 149º, 139º, 108º, 111º, nº 1, als. a) e b).
As soluções legais supra elencadas, resultam da remissão expressa do art 111º que se enquadra no Capitulo V na Secção IV Regime Jurídico Sobre a Recuperação de Empresas e da Insolvência, respeitante ao incidente limitado de qualificação da insolvência. Por ser o único dispositivo legal que trata especificamente do incidente limitado, cuidaremos de analisar de minuciosa as diversas alíneas.
Assim, há, desde logo, que notar que este contempla dois prazos distintos: o primeiro estabelece trinta dias para os interessados alegarem o que tiverem por conveniente para a qualificação da insolvência como culposa[24]; o segundo consagra o prazo de quinze dias para a apresentação do parecer do administrador de insolvência. Relativamente à al. c), parece necessário conjugá-la com o art.º 108.º, nº 7. Mas tal remissão não parece revestir grande utilidade, na medida em que no incidente aberto como limitado, nos termos do art.º 149º, nº 1, normalmente não se verifica a apreensão dos documentos do devedor, art.º 146º, al. g), devendo os mesmos ser apresentados pelos próprios interessados ou pelo insolvente. Depois, por força da al. c) do nº 1 do art.º 111º exclui-se a aplicação da al d) do art.º 110º ao incidente limitado.
Por fim, o nº 2 do 111º, por remissão para o art.º 157º, consagra que tem de ser permitido ao administrador da insolvência o exame de todos os elementos de contabilidade do devedor para poder elaborar o seu parecer.
Notas conclusivas
Feita a excursão na lei ficou as seguintes nos conclusiva nas seguintes perspectivas de que, o incidente da qualificação da insolvência encontra-se regulado na secção II do capítulos V do Regime Jurídico Sobre a Recuperação de Empresas e da Insolvência. O incidente é aberto na sentença que declara a insolvência, independentemente do sujeito na declaração da sentença de insolvência, é declarado aberto o incidente do qual, o incidente pleno é a regra, enquanto que, o incidente limitado reservado às situações excepcionais.
[1] Jurista, Licencido pela Faculdade de Direita da Unikivi na opção, Jurídico-Economico.
Escritor, poeta e palestrante, conta com um e-book, com o titulo, a Escuridão da Minha Luz.
[2] Cfr. Lei 13/21 de 10 de Maio, In Diário da República de Angola I Série- N.º 84
[3] Cfr. Artigo 104° nº 1.
[4] Cfr. Artio 225 da Lei 13/21
[5] Cfr. Artigo 110º, nº 3.
[6] Cfr. Lei 13/21.
[7] Cfr. Artigo 104° nº. 4.
[8] Cfr. LEITÃO, Luís Menezes, Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 2009. p. 269
[9] Cfr. OLIVEIRA, Rui Estrela, Uma Brevíssima Incursão pelos Incidentes de Qualificação da Insolvência in: O Direito, vol. V, ano 142, 2010, pp. 931-987 968.
[10] Cfr. MACHADO, João Baptista, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 19ª edição reimp., Coimbra: Almedina, 2011, p. 112.
[11] Cfr. PEREIRA, Rosa, O Incedente de Qualificação Juridica e os seus Efeitos, Tese de mestrda da faculdade de Direito do Porto da Universidade Católica Portuguêsa, 2011, p, 11.
[12] Cfr. FERNANDES, Luís Carvalho, Direito da Insolvência, 2005, Colectânea de Estudos Sobre a Insolvência, Quid Juris, 2009, p. 95
[13] Cfr. OLIVEIRA, Rui Estrela, op.cit., p. 974.
[14] MACHADO, João Baptista, op. cit., p. 112
[15] Cfr. Artigo nº 1 do art 105º.
[16] Cfr. SERRA, Catarina, A Insolvência Culposa; in: “Cadernos de Direito Privado, n.º 21, Jan. – Mar., 2008, pp. 54-71. p.65.
[17] PEREIRA, Rosa, Op. Cit p 19.
[18] Cfr. SERRA, Catarina, O Novo Regime Português da Insolvência – Uma Introdução, 4ª edição, Coimbra: Almedina, 2010, p. 121;
[19] Cfr. RAMOS, Elisabete, Insolvência da Sociedade e Efectivação da Responsabilidade Civil dos
Administradores, in: “Boletim da Faculdade Direito de Coimbra”, vol. LXXXIII, 2007, pp. 449-489.
[20] Cfr. Artigo art 146º, al. i.
[21] PEREIRA, Rosa, Op. Cit. P, 15.
[22] Ibdem
[23] Ibdem
[24] Cfr. Artigo 111º nº 1 al. a), c),