FICÇÃO JURÍDICA E FICÇÃO LITERÁRIA: O PROCESSO JURÍDICO ENQUANTO AMANTE DA NARRATIVA LITERÁRIA.
Fernando CAFUNDA[1]
Resumo:
O Direito não é Literatura, sequer Literatura é Direito. A literatura tem como traço característico a ficção e a liberdade de criação, enquanto o Direito é realidade, serve para solucionar dilemas da vida real, aplicando os enunciados normativos, com igualdade, segurança, fundamentação e coerência. Ambas buscam os significados da vida, e são possíveis através da realidade ontológica. Os juristas não se diferem tanto dos artistas, particularmente dos escritores. Na sua essência, os juristas se relacionam com a realidade da mesma maneira que os escritores, criando um mundo inteiramente novo, sujeitados às suas próprias regras. Conceitos típicos da teoria literária podem ser utilizados no estudo do Direito, permitindo a este contemplar novas questões, tornadas visíveis devido ao uso das lentes conceituais provenientes daquela teoria. Portanto, o conceito literário de ficção pode ser aplicado no estudo do direito, com o fim de compreender o quanto a actividade desenvolvida pelo operador do direito é um tanto semelhante àquela realizada pelos autores de obras literárias.
Palavras – chave: Ficção, Direito, Literatura.
FICTION JURIDIQUE ET FICTION LITTÉRAIRE: LE PROCESSUS JURIDIQUE COMME AMATEUR DE NARRATIF LITTÉRAIRE.
Résumé :
La loi n’est pas la littérature, même la littérature est la loi. La littérature a pour caractéristique la fiction et la liberté de création, tandis que le droit est la réalité, il sert à résoudre les dilemmes de la vie réelle, en appliquant les énoncés normatifs, avec égalité, sécurité, raisonnement et cohérence. Les deux recherchent les significations de la vie et sont possibles grâce à la réalité ontologique. Les juristes ne sont pas si différents des artistes, en particulier des écrivains. En substance, les juristes se rapportent à la réalité de la même manière que les écrivains, créant un monde entièrement nouveau, soumis à leurs propres règles. Les concepts typiques de la théorie littéraire peuvent être utilisés dans l’étude du droit, ce qui lui permet d’envisager de nouvelles questions, rendues visibles grâce à l’utilisation des lentilles conceptuelles de cette théorie. Par conséquent, le concept littéraire de fiction peut être appliqué dans l’étude du droit, afin de comprendre à quel point l’activité développée par l’opérateur du droit est quelque peu similaire à celle exercée par les auteurs d’œuvres littéraires.
Mots clés: fiction, droit, littérature.
À Guiza de Prefácio
O estudo sobre direito e literatura é bastante avançado noutros países, mas em Angola, pouco ou nada há sobre essa matéria. Mesmo nas grandes faculdades de direito ou nos círculos jurídicos, ainda é visto com alguma desconfiança. A relação interdisciplinar entre o direito e a literatura começou a ser estudada a fundo na década de 70, principalmente nos Estados Unidos, com a criação de disciplinas e cursos para investigar a conexão entre as áreas. De lá para cá, inúmeras obras foram lançadas a respeito do tema e, aos poucos, incorporaram-se aos meios académicos de todo o mundo. A principal abordagem metodológica utilizada dentro da relação entre direito e ficção é o uso desta última como lente para estudar diversos temas jurídicos sob contextos políticos diferentes. Usam-se as obras literárias para inserir o direito na realidade social da ficção e, a partir dela, articular uma crítica à dimensão política do direito: a quem ele serve, o que ele reproduz, o que dele se constrói.
O aplicador do direito é constantemente demandado a dar respostas a conflitos concretos e diversos, e a literatura justamente abre um espaço de reflexão e de acção mais crítico. A literatura apresenta novas perspectivas aos operadores do direito, antecipa temas relacionados ao universo jurídico. A ficção literária tem riqueza, a sutileza e a sensibilidade que permite que o direito às vezes fique até mais bem preparado para enfrentar conflitos que seriam inimagináveis fora da ficção.
A capacidade de se colocar no lugar do outro, a empatia é, além de uma das funções mais importantes da inteligência, uma das principais ferramentas de todos que operam com o direito. As Normas jurídicas direccionam-se aos humanos, em suas mais diversas relações, assim como a ficção literária. A literatura serve como instrumento de fortalecimento dessa habilidade, através de situações na qual enxergamos o mundo e dos mais diversos pontos de vista, onde questionamos realidades vivenciadas pelos protagonistas de acordo com as concepções e projectos de vida que não nos pertencem, mas que devemos buscar compreender se quisermos entender a história que existe por trás. Além do olhar crítico, a literatura de ficção também guarda em si a potencialidade de tornar operadores mais empáticos e humanos, capazes de se colocar no lugar dos destinatários da causa em que advogam a favor ou contra, capazes de “a casaca” daquele que senta diante da mesa no escritório de advocacia.
Então, partimos por nos questionar: Qual o fim último do Direito se não a realização dos projectos de vida das pessoas? Sendo assim, como poderíamos operá-lo se jamais nos colocamos no lugar delas para compreender tais projectos? Quanta realidade se encontra nas ficções? E quanto da realidade pode ser compreendido por meio delas?
- O DIREITO NA LITERATURA: UMA PERSPECTIVA TEÓRICA
Quanta realidade se encontra nas ficções? E quanta ficção conforma nossa realidade? Streck (2013, p.3). A Literatura enquanto espaço privilegiado para o exercício da linguagem, reúne vários conhecimentos, expressa várias realidades, une vários feixes de sentido que são objectos de disciplinas autónomas, como a história, a filosofia, a psicologia. Neste sentido, a despeito da aparente distância, muitas são as conexões que podem ser estabelecidas entre o direito e a literatura. Ambas as áreas do conhecimento operam no domínio mágico e sempre transcendental da palavra e tomam as relações humanas como substrato, ainda que de formas diversas, de forma que:
[…] o estudo do Direito e Literatura apresenta dois aspectos comuns a ambas as disciplinas: (a) tanto uma quanto a outra, embora de forma e com finalidades diferentes, lida com as relações humanas, o que pressupõe um apurado conhecimento da condição humana; (b) ambas atribuem necessariamente um papel central à palavra, o que vincula a actividade de juristas e literatas à interpretação de textos. (Aguiar e Silva apud Trindade, 2008, p.22).
O estudo do direito e a literatura mantém entre si uma relação dialéctica, conforme preceitua Ost que:
Em vez de um diálogo de surdos entre um direito codificado, instituído, instalado em sua racionalidade e sua efectividade, e uma literatura rebelde de toda convenção, ciosa de sua ficcionalidade e de liberdade, o que está em jogo são empréstimos recíprocos e trocas implícitas. Entre o “tudo é possível” da ficção literária e o “não deves” do imperativo jurídico, há, pelo menos, tanto interacção quanto confronto. (2004, p.23).
A literatura por vezes busca no direito, temas para a composição de suas tramas, incontáveis são as obras nas quais os conflitos jurídicos compõem suas narrativas. A obra Barroco Tropical, de Agualusa (2009) é um exemplo. Esta narrativa, desde a política à justiça social, desvela o tratamento jurídico atribuído a determinados segmentos da sociedade; a pobreza do povo diante do nascimento galopante de estruturas que vendiam para o mundo imagem de grandeza e crescimento de Angola; o conceito de justiça e ética entre outros aspectos. A análise das obras literárias pode reconstruir determinadas imagens sobre o mundo jurídico circulantes na sociedade angolana e no mundo afora, sendo que há uma relação entre a obra e a realidade histórico social em que foi produzida, já que o autor não é alheio ao contexto em que está inserido. As produções literárias carregam consigo marcas históricas, políticas e sociais decorrentes do período de sua produção, e o contexto jurídico insere-se nesta construção ainda que de forma implícita muitas vezes. Ao expressar uma visão de mundo, a literatura traduz o que a sociedade e seu tempo pensam sobre o direito.
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[1] Natural de Malanje, jurista, escritor e crítico literário.