AS IMPLICAÇÕES DA ELIMINAÇÃO DA OBRIGATORIEDADE DO CAPITAL SOCIAL NO ACTO DE CONSTITUIÇÃO DAS SOCIEDADES POR QUOTAS
Por: Salvador Ramos, Advogado.
ENQUADRAMENTO
A eliminação do capital social mínimo obrigatório no acto de constituição da sociedade comercial resultou do programa do governo denominado “Angola Investe” que tem como objectivo a desburocratização e a simplificação de medidas no processo de constituição de sociedades comerciais.
A preocupação com a criação de um ambiente de negócio que estimule a livre iniciativa privada, sobretudo de pequenas empresas, enquanto força motriz do desenvolvimento económico e da actividade empresarial determinou a eliminação da obrigatoriedade de escritura pública na generalidade dos actos da vida da sociedade, bem como do requisito de capital social obrigatório.[1]
É assim que, com vista a alterar a menção obrigatória constante na al., f) do art. 10.º, conjugado com o art. 221.º “Montante do Capital Social” da Lei n.º 1/04, de 13 de Fevereiro – Lei das Sociedades Comerciais, foi aprovada, entre outras, a Lei n.º 11/15, de 17 de Junho – Lei da Simplificação do Processo de Constituição de Sociedades Comerciais.
Esta tendência das empresas fazerem alterações profundas no capital das sociedades por quota, registou-se nos países da américa do norte e em alguns países ao nível da Europa como elemento catalizador de investimentos;
Existem muitos ordenamentos jurídicos que não alteraram o regime tradicional do capital social, como “LUXEMBURGO” a société à responsabilité limiteé” o capital social mínimo exigido é de 12.394, 69 Euros; “MÓNACO”, com a mesma designação tem como capital social mínimo exigido 15.000.00 Euros; “ITÁLIA”, o capital social exigido é 10.000,00 Euros.
Não obstante reconhecermos as vantagens e benefícios que a eliminação de procedimentos burocráticos e trâmites formais trouxe para o empresariado, pensamos trazer o verso da moeda, no sentido de analisar as implicações jurídicas da eliminação do capital social mínimo obrigatório, ou seja, ver em que medida é posto em causa as funções tradicionais do capital social e os interesses de terceiros.
O mínimo de capital social que era exigido numa sociedade por quotas era figurada num valor que, como é óbvio, era diluida nas despesas de legalização e inserção no mercado. O que revela alguma fragilidade para os terceiros que, caso entendam responsabilizar algum sócio, há, como era patente, o risco de não encontrar no seu activo qualquer montante ou valor aproximado ao do capital social.
Neste sentido, se o capital social constitui garantia dos credores e o sócio apenas pode responder até ao limita das suas participações sociais, a eliminação do capital social mínimo obrigatório vem gerar um grande problema jurídico e social.
- Capital Social[2]
A constituição de uma sociedade comercial impõe que os seus promotores reúnam meios financeiro e materiais adequados e suficientes para a realização do seu projecto empresarial.
Estes meios financeiros deverão resultar inicialmente da participação de cada sócio, podendo ser de ordem financeira ou mediante apresentação de um bem ou activo susceptível de ser avaliado em dinheiro.
O que sugere que o capital social seja entendido como a soma de todas as participações dos sócios[3]. Esta perspectiva gerou uma grande controvérsia ao nível da doutrina, sendo que, a maioria da doutrina entende que o capital social não constitui dinheiro disponível ou guardado pela sociedade, mas representa uma cifra, uma expressão numérica de uma determinada quantia em dinheiro, um valor contabilístico que representa as contribuições de cada sócios[4].
Dito isto, não se pode compreender o capital social como dinheiro ou outros bens guardado, pois este, no geral é gasto logo no início da actividade, mas, como simplesmente que as entradas feitas por cada sócio são suficientemente avaliados e somados cujo resultado, em forma de representação numérica, passa a figurar no contrato social como sendo o capital social.
PAULO OLAVO CUNHA, define o capital social como cifra numérica de valor constante, em dinheiro, expressa em moeda com curso legal num determinado país, correspondente ao património de constituição da empresa[5].
O capital social, enquanto representação numérica nos Estatutos, é fixa e imutável durante a vida da sociedade, só se admitindo a sua alteração por vontade dos sócios que podem deliberar no sentido de aumento ou redução do capital social, quando se verifica apuramento de perdas ou lucros ou de operações na estrutura organizacional da sociedade, como nos casos de fusão ou cisão da sociedade.
Pode ainda verificar-se, não já qualquer alteração da referência numérica, mas valorização das participações de cada sócio.[6] Na visão de António P. de Almeida, os sócios têm vantagem em constituir a sociedade com capital insuficiente, apesar do seu efeito perverso.
2. Função do Capital Social
Existem, ao nível doutrinal, diversa categorização da função do capital social, o que demonstra uma elevada divergência sobre o assunto. Ela pode versar sobre situações que se constituem internamente, como a organização e funcionamento e sobre relações que se constituem com terceiros, destacando aqui a função de garantia.
Assim, o carácter obrigatório da menção do capital social no contrato de sociedade, revelava-se de extrema importância, quer para determinar a posição dos sócios, visto que a quantidade de verbas ou activos com que participa constitui critério para definir a sua posição na sociedade, e representou mecanismo de protecção dos interesses dos credores sociais.
Neste ínterim, destacamos as seguintes funções do capital social:
a) Determinação da situação finaneira da sociedade[7]
O legislador pretendeu fazer do capital social uma medida para se determinar a situação financeira da sociedade, no sentido de aferir se a actividade da sociedade gerou algum valor adicional ou diminiução do capital social.
Daí que, periodicamente (anualmente) a sociedade está obrigada a efectuar apuramento de tudo quanto foi investido e dos gastos realizados para verificar se esta produziu lucros que possam ser distribuídos aos sócios.
Assumimos que a sociedade teve lucros quando o património exceder o valor do capital social e das reservas legais ou estatutárias que tenham sido constituídas e dizemos que a sociedade teve perdas ou prejuízos quando o valor do património apurado encontra-se abaixo do valor do capital social.
Pelo o exposto, pode-se confirmar que o capital social é indispensável para esta avaliação vital e periódica da vida societária, ou seja, constitui o principal elemento para se determinar a situação financeira da sociedade.
b) A Quantificação dos direitos dos sócios[8]
É a partir do percentual da participação de cada sócio no capital social que se vê quantificados os seus direitos na sociedade.
É assim que, o direito aos lucros, são distribuídos aos sócios na proporção da contribuição que cada um faz, o direito de voto, cujo número de votos de cada sócio revela o seu poder e direitos nas deliberações sociais, o direito a obter certas informações sobre a vida da sociedade entre outros são reconhecidos e atribuídos em virtude da quantificação da participação no capital social.
c) Garantia de Terceiros
Inicialmente importa elucidar o sentido e o alcance que se pretende atribuir quando em voga tal expressão, visto que o capital social é uma mera referência numérica constante nos estatutos que representa as entradas dos sócios e, geralmente, é gasto no início da actividade;
Segundo TARSO DOMINGUES (2013), a função de garantia é considerada a função por excelência do capital social, reconhecida como “função rainha”.
A função de garantia[9] dos direitos e interesses dos terceiros (dos credores da sociedade) consubstancia-se no capital social como um valor abstracto de referência que impede que os sócios retirem licitamente os bens e activos da sociedade sem superar a soma do capital social e as reservas constituídas.
Como tutela dos interesses dos credores, a sociedade deve respeitar o limite do capital social, de modo que o património da sociedade não seja inferior ao montante do capital social, ficando assim impedidos de distribuir bens aos sócios.
No final, o capital social vai ser um indicador fiel da capacidade económica da sociedade, na medida em que a distribuição de lucros reflectirá uma boa situação líquida. No mesmo sentido defende PAULO O. CUNHA, a garantia efectiva dos credores encontra-se no património.
3. Eliminação do capital social mínimo obrigatório.
Um dos princípios essenciais do capital social, princípio da intangibilidade do capital social comporta um mecanismo de controlo, pois, inviabiliza a utilização de valores ou montantes necessários para manter um mínimo do património líquido da sociedade, pelo menos no limite do valor do capital social.
Este princípio vai consistir na imposição legal que impede a sociedade de distribuir bens sociais aos sócios que se mostram necessários para a cobertura do capital social e das reservas constituídas. É neste sentido que o princípio serve-se de instrumento de protecção aos credores.
Assim, a nova redacção constante no n.º 1 do art. 6.º da Lei n.º 11/15, de 17 de Junho, que estabelece que “Nas sociedades por quota, unipessoais, pluripessoais, o valor do capital social é livremente fixado no contrato de sociedade…” constitui um grande risco para os credores que deixam de ver tutelado os seus interesses.
O mínimo legal obrigatório conferia uma certa segurança, em termos de responsabilidade, e certeza jurídica sobre a possibilidade de ver salvaguardado os seus direitos, apesar de, mesmo com o elemento do mínimo obrigatório não se conseguia fazer recair sobre os sócios ou a sociedade qualquer consequência punitiva, antes de mera ordem social.
O novo postulado vai gerar um quadro onde o capital social deixa de ser um elemento indicativo real da situação financeira da sociedade, o que de forma perfunctória, levará terceiros-credores a exigirem mais garantias da sociedade que, em termos prático, vai impor novos sacrifícios aos sócios (garantias pessoais).
O mínimo exigido no regime anterior, diga-se em abono da verdade, um valor módico, sem grande expressão monetária, não se afigurou suficiente para impedir a que muitas sociedades fossem criadas precipitadamente e descapitalizada.
O capital social obrigatório constituía um dos meios primários de financiamento da sociedade, sem ignorar a insuficiência deste financiamento, o que determina que a sociedade, ao longo da sua vida, recorra a outros meios de financiamento (contrato de suprimento, obrigações, aumento de capital, financiamento bancário entre outros).
Não obstante a existência de outras vias de financiamento, entendemos que o capital social deve comportar um elemento mínimo e obrigatório que seja suficiente e adequado para a prossecução do seu objecto social, agregando, deste modo, valor para a sociedade, quer em termos de oferta de bens e serviços, como geração de novos postos de trabalho.
CONCLUSÃO
Em nota de conclusão sobre a narrativa apresentada, podemos dizer que é visível a grande preocupação do legislador angolano em acompanhar ou, se quisermos, harmonizar o seu regime com o em voga em alguns ordenamentos jurídicos europeus e americanos, bem como reduzir os procedimentos burocráticos que em muitas situações onera o processo, permitindo assim o fomento das pequenas e médias empresas.
O nosso legislador tentou resolver um não problema, dado que a constituição da sociedade em Angola não exigia dos sócios o desembolso de um grande investimento financeiro, quando muito, um mínimo, em termos de sinal para os credores e a sociedade, da sustentabilidade do negócio.
Porém, a flexibilização do regime decorrente da eliminação do capital social mínimo obrigatório viola princípios estruturantes do direito societário, coloca em causa as funções do capital social, sobretudo em prejuízo de terceiros e proporciona uma situação de subcapitalização das sociedades.
Assim, o novo regime, neste quesito, está muito aquém do desejável em termos de solução do problema jurídico e social.
[1] O Escritório FBL – Advogados defende que o legislador esteve muito bem ao eliminar o capital social mínimo obrigatório, pois desta forma permitirá a que os agentes económicos que se encontram no mercado informal formalizem as suas actividades. https://www.fbladvogados.com/comunicacao/artigos-na-imprensa/SIMPLIFICACAO-DO-PROCESSO-DE-CONSTITUICAO-DE-SOCIEDADES-COMERCIAIS-EM-ANGOLA/189. Consultado aos 18.03.2022
[2] A doutrina italiana defende que para melhor compreensão do instituto do capital social e impedir imprecisões é importante atender a nova perspectiva de capital social, destacando o capital social nominal e capital social real. O capital social nominal compreende a cifra formal que se encontra no contrato de sociedade, ao passo que o capital social real integra todos os bens que constituem as entradas dos sócios na sociedade, daí que neste tipo de capital os activos da sociedade só se estabelece com correspondência qualitativa no momento inicial da sociedade, afigurando- se extremamente difícil num momento posterior. No final, só interessam os bens que equivalem ou igualam, em termos qualitativos, o capital social nominal. Cfr. Patrício Rito Pereira, Dissertação de Mestrado – O Capital Social Livre nas Sociedades por Quota – Causas e Efeitos, Setembro de 2016, p. 27
[3] ALMEIDA, António Pereira de. Direito Angolano das Sociedades Comerciais, Coimbra Editora, 2.º Edição, Dezembro de 2013, p. 47
[4] CORREIA, J. A. Pupo. Direito Comercial – Direito da Empresa. Ediforum Edições Jurídicas, 10-º Edição, Lisboa, p. 203
[5] CUNHA, Paulo Olavo. Direito das Sociedades Comerciais. Edições Almedina, 7.º Edição, Maio, 2006, p. 268
[6] O mínimo obrigatório de capital social no acto de constituição da sociedade comercial por quotas, ao abrigo do art. 221.º da Lei n.º 1/04, de 13 de Fevereiro – Lei das Sociedades Comerciais, sempre gerou uma falsa realidade financeira da sociedade, tanto que, encontrávamos sociedades com o capital social mínimo exigido, mas com um volume de negócio cujo património não reflectia o seu capital.
[7] ALMEIDA, António Pereira, Direito Angolano das Sociedades Comerciais, Coimbra Editora, 2.º Edição, Dezembro de 2013, p.47
[8] Ibid, p., 47
[9] BRITO CORREIA refere que a imposição por força da lei de um capital social mínimo para as sociedades por quota era vista pela doutrina como uma garantia para os credores. Não partilha do mesmo entendimento FÁTIMA RIBEIRO que considera que a imposição não constitui uma garantia satisfatória para terceiros.
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