Leandro E. G. Ferreira, Facebook.
PARTE 1: LIMITES E CONTENÇÕES DA ASSEMBLEIA NACIONAL NA APRECIAÇÃO DA REVISÃO CONSTITUCIONAL.
Já tivemos a oportunidade de referir que a proposta de revisão constitucional é bastante abrangente do ponto de vista quantitativo (à volta de 40 incidências), digna por isso de elogio, e que não está isenta de reparo quanto à ligeireza (política e jurídica) com que aborda certas matérias escolhidas para a reforma, bem como a preterição de várias outras de igual urgência, como são exemplo as espécies e relação entre actos normativos e soberanos, os direitos fundamentais, a correcção e reforço das garantias criminais, com redefinição ou clareza desse sistema de justiça, em específico quanto à instrução preparatória, o sistema de justiça e um tribunal de conflitos, as garantias administrativas, a tutela sobre formas de administração autónoma não autárquica, as associações públicas profissionais e regime de independência, o efectivo reequilíbrio da balança de poderes constitucionais com redução ou condicionamento de várias competências presidenciais, a eleição do PR, o sistema de imunidades previsto na CRA, o estatuto das instituições do poder tradicional e o seu sistema de administração da justiça, o controlo e cessação de mandatos, o regime da própria revisão constitucional e da fiscalização da constitucionalidade, dentre outros. Muito havia ainda a reformar.
A “iniciativa de revisão constitucional” representa uma das especificidades de uma lei fundamental e, em Angola, é constitucionalmente reservada ao PR e a 1/3 dos deputados em efectividade de funções (artigo 233.º), atento ao seu valor estruturante. Ela representa um eminente acto político e manifesta a designada “intenção normativa constituinte”, formalismo político indispensável para ser desenvolvido este processo, sendo, por conseguinte, um evento político-constitucional especial, sujeito a diversos condicionamentos. Dentre estes, está o facto de se tratar de uma competência de “punho e vontade próprios”, devendo ser desenvolvida “nos termos e medida definidos pela entidade que lhe dá início”.
Daí a designação e clarificação apresentada publicamente logo no início, pretende-se apenas uma “revisão pontual” em 2021, não se devendo compreender como abrangente sobre todo o articulado constitucional (que permitiria aos deputados o equacionar de outras disposições, institutos e matérias). Se os parlamentares o quisessem, deviam exercer, por si e seu próprio punho, a iniciativa de revisão, pelo que, não sendo este o caso, ficam condicionados ao objecto da iniciativa (não obstante a competência de aprovação final da Lei de Revisão residir na Assembleia Nacional).
Nessa perspectiva, ainda que exista aqui e acolá o desejo de se dever ir além, as contribuições dos deputados, da sociedade civil, das instituições públicas e outros deve limitar-se a abordar as matérias identificadas na proposta de revisão e não escapar delas, do seu âmbito semântico, nem dos seus objectivos. Tal não significa que a Assembleia Nacional, em funções constituintes, se deve limitar a dizer sim ou não à iniciativa.
Pelo contrário, compete a este órgão soberano a apreciação e construção das matérias e institutos em que as alterações são solicitadas, podendo ajustar o conteúdo das propostas nos termos julgados mais convenientes, mas sem perder de vista a semântica e os objectivos gerais definidos pela entidade que dá a iniciativa ao procedimento, nem lhe provocar uma perda total de sentido ou transformação e inovação de conteúdo. Nestas situações, podem influir vários critérios de legística e linguística, inclusive sobre a forma de redacção dos textos, da localização sistemática das normas, do conceito político próprio-parlamentar e do aprofundamento analítico das matérias em sede do relatório e debates que serão desenvolvidos pela Comissão de Assuntos Constitucionais e Jurídicos (com a colaboração de todas as demais Comissões ligadas ao objecto da proposta).
A AN pode igualmente realizar alterações em disposições correspondentes ou relacionadas às alterações requeridas. Por exemplo, ao aditar a tutela de mérito na alínea d) do artigo 120.º, CRA nos termos indicados na proposta, é indispensável acrescentar a mesma figura no artigo 221.º, para lhe conferir correspondência e unidade de sentido (apesar de tal não ser requerido pelo Executivo). Nos mesmos termos, se a AN recusar a inserção da tutela de mérito nesta norma, por julgar não dever ser admissível, poderá clarificar a espécie de tutela prevista no artigo 221.º ou nas outras formas de poder local.
Noutra hipótese, definido o objectivo de conferir independência ao BNA, podem os parlamentares incluir os vice-governadores nas entidades sujeitas ao escrutínio parlamentar e não apenas o governador (conforme indica a proposta), ao abrigo da competência atribuída ao PR de os nomear a todos (alínea j) do artigo 119.º). São modificações correspondentes e correlatas, que cabem no âmbito dos poderes de reforma parlamentar e, nestes casos, não se limita o pronunciamento de tal órgão a apenas dizer “aprovo” ou “não aprovo”.
Como se percebe, o sentido directo e de maior destaque nesta questão e nesta revisão é, pois, este: tudo o que não foi objecto da proposta, nem for aprovado/alterado na apreciação parlamentar de 2021, não pode ser alterado dentro dos próximos 5 anos (ressalvada a situação do n.º 2 do artigo 235).
PARTE 2: LIMITES DA ASSEMBLEIA NACIONAL NA APRECIAÇÃO DA PROPOSTA DE REVISÃO CONSTITUCIONAL (aditamentos e inovações são possíveis??)
O texto acima publicado oferece na íntegra os esclarecimentos e as notas essenciais sobre a matéria, nomeadamente a “natureza da iniciativa” enquanto acto político-legislativo, a “intenção normativa constituinte”, o “carácter pontual” da revisão, o exercício de uma “competência constitucional reservada” e o estabelecimento de “condições específicas” considerando a natureza constitucional deste procedimento normativo.
As nossas conclusões referiam que a AN vê limitada a sua intervenção ao objecto, fundamentos e objectivos da iniciativa presidencial (não obstante nela residir a competência de aprovação final da Lei de Revisão Constitucional). A “intenção normativa constituinte” não é apenas um acto-formalidade inserido no procedimento normativo. É por excelência um acto político, que representa o exercício do maior poder soberano existente numa ordem social, por meio da qual um representante do povo expressa a vontade de definir as normas estruturantes desta ordem social.
O órgão que a manifesta define, à partida, a sua pretensão de reforma (de âmbito geral, específico ou pontual), as normas objecto da revisão (artigos a alterar e/ou aditar, suprimir), bem como os respectivos fundamentos (artigo 233.º, Lei n.º 13/17), ficando definido o “pedido” de reforma (princípio do pedido). Quer a iniciativa tenha resultado do PR, quer dos deputados, o procedimento seguinte, nos termos definidos no Regimento da AN (artigo 234.º, Lei n.º 13/17), consiste em a AN dever validar a proposta/projecto mediante a verificação de aceitação da abertura do procedimento por 2/3 dos deputados em efectividade de funções, antes de se passar para a sua discussão. Não é um acto de mera aprovação na generalidade; é um acto político de validação/aceitação da proposta de alteração constitucional, resultante da apreciação do relatório-parecer da Comissão dos Assuntos Constitucionais e Jurídicos (e eventualmente outras); é um acto de verificação de cumprimento dos limites de revisão; é um acto de verificação do alinhamento político-parlamentar ao pedido de alteração. Trata-se, como é óbvio, de um acto com natureza e procedimento diferente do procedimento legislativo comum e fortemente influenciado pela natureza das normas a rever (sujeita a procedimentos específicos).
Uma vez aprovado o primeiro relatório-parecer e validada a base sobre que assentará a revisão (é sobre aquela proposta específica que os deputados exprimem o seu assentimento), a Comissão Especializada da AN deve tomar de base esse texto e dirigir/limitar o seu trabalho na base do conteúdo saído de tal Plenária. Os deputados são livres de iniciar, com autonomia, um projecto paralelo e caso pretendam algum aditamento ou alteração substanciais não tratados já na proposta/projecto (ainda que imperfeitamente), devem primeiramente submeter a escrutínio um pedido-iniciativa, com 1/3 de deputados subscritores (que requer novo relatório-parecer e deliberação plenária de 2/3), que sempre será uma nova proposta/projecto e não a do PR agora em curso.
Nessa matéria, a CRA não oferece nenhum prazo para que os deputados possam assim proceder, pelo que se deve entender que tal lhes é permitido até ao momento em que seja admissível apresentar pontos para a agenda parlamentar da Plenária seguinte (vide art. 113.º e n.º 4 do art.º 115.º, Regimento). Não o fazendo (conforme julgamos que venha a acontecer no presente caso angolano, pelas circunstâncias da representação parlamentar saída do pleito de 2017), fica a AN – entenda-se os deputados – condicionados à apreciação da iniciativa presidencial, tal como ela se apresenta.
As discordâncias que recebi são dirigidas à afirmação de se pretender instituir um novo limite de revisão não previsto na CRA. Entendo que são conceitos e realidades distintas, sendo as nossas conclusões ex rerum natura, afinal é o conceito e lógica inerentes à exigência de manifestação da intenção normativa constituinte que define essa restrição. O PR ou um grupo específico de deputados não deve ser sujeito à trágica e difícil (in)decisão de, em caso de exercício daquele acto formal, se verem confrontados com reacções de bloqueio e contraofensivas por parte das forças políticas opostas, que se podem servir do procedimento iniciado para incluir a sua agenda directa no momento da discussão da Lei de Revisão Constitucional. Tal só lhes é possível por meio do exercício da intenção normativa constituinte, podendo os deputados assim reagir a uma iniciativa presidencial, como ser este a reagir de tal forma caso a iniciativa seja dos deputados. Outrossim, a tese de novo limite formal, com natureza procedimental, não pode colher, porquanto actos formais e procedimentos regimentais são realidades distintas, além de existirem várias normas procedimentais não descritas na CRA que movem o processo constituinte, explícitas no Regimento ou na Lei do Processo Constitucional, quando não sejam mesmo implícitas, resultantes de trabalhos interpretativos da CRA e da Lei.
Assim, na essência e na senda destes dois textos, mantenho a afirmação de que a estruturação do procedimento constituinte e o valor político-processual do acto de iniciativa, tanto parlamentar, como presidencial, são o fundamento para essa restrição, sendo assim também até nos sistemas em que a iniciativa de revisão é constitucionalmente exclusiva dos próprios deputados. O poder político fundamental da AN de aprovar as alterações da CRA não é prejudicado. Se este órgão (todo o seu colectivo, um grupo de deputados ou deputados distintos dos que apresentaram um projecto), por iniciativa e punho próprio, pretender dispor sobre outras matérias da CRA, pretender alargar o âmbito qualitativo da proposta apresentada, deve produzir uma iniciativa própria (realidade paralela nos sistemas de editam as constituições por meio das amendments). Há opiniões contrárias, mas esta é a nossa convicção, até convencimento do contrário.
De todo o modo, sempre se encontrará o devido suporte doutrinário destes aspectos que defendo, dentre outras, nas seguintes obras:
Gomes CANOTILHO e Vital MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª ed., p. 999 (penúltimo parágrafo) e p. 1000 (último parágrafo).
AAVV (CONGRESSIONAL RESEARCH SERVICE, 2017), The Constitution of the United States of America – Analysis and Interpretation, p. 999 (último parágrafo).
Luís Roberto BARROSO, Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, 2.ª ed., (vers. electr.), p. 184 (nota 47), p. 186 (último parágrafo), p. 187 (último parágrafo).
Pedro LENZA, Direito Constitucional Esquematizado, 20.ª ed. (vers. electr.), pp. 711 e 712 (ponto 9.14.1.1., in totum).
Leandro E. G. Ferreira, Facebook
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