ARTIGO DE OPINIÃO
Beloniel DOMINGOS[1], Luanda – Angola
“O homem quer obedecer o legislador, mas não pode desobedecer a natureza e por toda a parte ele constitui a família, dentro da lei se é possível, fora da lei se é necessário”
Virgílio Pereira de Sá
NOTAS INTRODUTÓRIAS
É inegável que a comunhão conjugal estabelecida em virtude do matrimónio impõe uma obrigação de comunhão de vida que, por sua vez, implica uma determinada “osmose patrimonial.”[2]
Assim, facilmente se compreende que o regime da responsabilidade por dívidas está intimamente correlacionado com o regime patrimonial previsto para o casamento[3].
Tal regime apresenta interesse, não só nas relações entre os cônjuges, mas também entre estes e terceiros pois, é dado assente que a responsabilidade patrimonial constitui a garantia do cumprimento das obrigações assumidas.
Contrariamente ao que acontece na generalidade das obrigações, e porque, se encontra consagrado, entre nós, um regime especial em matéria de responsabilidade por dívidas dada a plena comunhão estabelecida entre os cônjuges, a comunicabilidade das mesmas pode dar-se ainda que tenham sido contraídas por apenas um dos cônjuges.
AS DÍVIDAS DOS CÔNJUGES
Durante a vigência do casamento, admite-se a possibilidade de cada um dos cônjuges contrair dívidas sem o consentimento do outro cônjuge. As dívidas podem ser contraídas pelos cônjuges em relação a terceiros ou pelos cônjuges entre si.
A natureza da dívida varia consoante ao regime económico escolhido pelos cônjuges, que pode ser de obrigações solidárias no caso de comunhão de adquiridos ou de obrigações conjuntas no caso de separação de bens. A depender do caso em concreto, podem ser chamados ao pagamento das dívidas os bens próprios, os bens comuns ou o direito de meação dos bens comuns.
O CF classifica as dívidas independentemente do regime económico adoptado pelos cônjuges da seguinte forma:
- Dívidas comuns
- Dívidas exclusivas
Nas dívidas comuns, dentro do regime de comunhão de adquiridos a responsabilidade dos cônjuges é solidária (art.º 61.º, nº 2); já no regime de separação de bens a responsabilidade é meramente conjunta (art.º 63.º n.º 2 do CF).
O art.º 61º do CF estabelece quais dívidas responsabilizam ambos os cônjuges, podendo ser contraídas por ambos ou por um só cônjuge, mas são comunicáveis ao outro. Podem assim ser consideras dívidas que responsabilizam ambos os cônjuges:
- Aquelas contraídas por ambos ou por um deles para acorrer aos encargos da vida familiar – art.º 61. º, n.º 1.
- Aquelas contraídas em proveito comum do casal – art.º 61.º, n.º 1
- Aquelas contraídas por ambos os cônjuges ou por um deles com o acordo do outro – art.º 21.º, n.º 2.
Vem expresso no art.º 62.º do CF as dívidas que são de responsabilidade exclusiva do cônjuge que a contraiu, sendo as seguintes:
- Aquelas contraídas por cada um dos cônjuges sem o acordo do outro;
- As dívidas por alimento não incluídos no n.º 4 do art. 61.º;
- As dívidas provenientes de condenações por crimes. Indeminizações, restituições, custas judiciais ou multas por factos imputados a cada um dos cônjuges.
SOBRE OS ENCARGOS GERAIS DA VIDA FAMILIAR
Ensinam F. PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, referindo-se aos mencionados encargos normais da vida familiar, “Trata-se das dívidas pequenas, relativamente ao padrão de vida do casal, em geral correntes ou periódicas, que qualquer dos cônjuges tem de ser livre de contrair. É aqui que cabem as dívidas de alimentação, vestuário, médico e farmácia, etc.”[4]
Normalmente, são dívidas contraídas por um dos cônjuges no âmbito da parcela de administração dos bens afectos ao governo do lar que lhe caberá, e em proveito comum do casal; se for assim, já seriam de responsabilidade comum por força do art.º 61.º do CF, mas a lei nem exige a prova dos pressupostos requeridos neste artigo, porque presume que eles se verificam, ou então trata-se de dívidas alheias à administração de bens, ou que não têm intenção de proveito comum, mas que se integram num quadro normal de despesas, como a dívida para pagamento de uma intervenção cirúrgica ou das férias de um filho.
Não interessa se as dívidas sejam contraídas antes ou depois do casamento, nem que o regime de bens seja um ou outro; a verdade é que se trata de encargos preparatórios do casamento ou derivados da vida familiar, a cuja responsabilidade nenhum cônjuge se pode eximir, ainda que não tenha contraído pessoalmente a dívida nem tenha consentido expressamente nela.[5]
Também ANTUNES VARELA se expressa no mesmo sentido: “Entre os encargos normais da vida familiar cabem não só as despesas do governo doméstico (alimentação, vestuário, calçado, aquecimento da casa, artigos de limpeza, medicamentos, etc.), como outras que o transcendem (renda de casa, propinas escolares dos filhos, transportes diários para a escola ou o emprego, aquisição de gasolina para a viatura, etc.).”
Estas dívidas serão, em regra, contraídas por cada cônjuge dentro dos poderes de administração que lhe competem no governo da casa. Mas ainda que sejam contraídas pelo cônjuge, que não tem o pelouro correspondente, gozam do mesmo tratamento. Assim poderá inclusivamente suceder com algumas das providências administrativas tomadas nas condições previstas pelo art.º 61.º n.º 1.º Essencial para o efeito é que, não só pela sua natureza, mas também pelo seu valor, as dívidas caibam entre os encargos normais da vida familiar, tendo em conta o padrão de vida do casal. Este é o preciso alcance da expressão – «encargos normais» – intencionalmente usada na lei. Não se confundem os encargos da vida familiar com as dívidas contraídas em proveito comum do casal, porque há encargos normais da vida familiar que apenas se referem a um dos cônjuges (a blusa ou a saia comprada para a mulher; a gravata ou o aparelho de barbear adquirido para o marido) ou parentes deles; e outros há que respeitam somente aos filhos ou alguns deles.[6]
JORGE DUARTE PINHEIRO sintetiza que “o conceito de encargos da vida familiar abrange todas as necessidades dos cônjuges, filhos, outros parentes (ou afins) a cargo dos cônjuges, ditadas pelo padrão de vida do agregado familiar. Não é, pois, legítimo resumi-los às despesas do lar.”
A dívida deve ter sido contraída para ocorrer aos encargos normais da vida familiar. A normalidade é aferida pelo critério do valor. A dívida tem de ser pequena, relativamente ao padrão de vida do casal, podendo ser ou não corrente ou periódica. Desde modo, a aquisição de um automóvel, embora frequente, pode corresponder a um encargo da vida familiar, mas não a um encargo normal da vida familiar de um casal médio.[7]
CRISTINA M. ARAÚJO DIAS enfatiza que para que a dívida se considere encargo normal da vida familiar é essencial “… para o efeito é que, não só pela sua natureza, mas também pelo seu valor, as dívidas caibam entre os encargos normais da vida familiar, tendo em conta o padrão de vida do casal. Tratar-se-á de pequenas dívidas, correntes ou periódicas, como as dívidas de alimentação, vestuário, médicas e de farmácia, etc. Apesar de a lei não especificar em que consistem estes encargos da vida familiar, e cuja determinação depende de diversos factores (como as condições económicas, os usos, o padrão de vida habitual e próprio de cada casal) pode dizer-se que neles cabem todas as despesas inerentes à vida doméstica que, dentro do padrão de vida possibilitado pelos meios económicos à disposição dos cônjuges, correspondem aos hábitos da generalidade dos casais em iguais ou idênticas condições económicas e sociais.”[8]
Temos, pois, que encargos normais da vida familiar são as dívidas do casal, normalmente de montante não elevado, não só relativas às despesas do governo doméstico, como também outras, como a renda de casa, despesas escolares dos filhos, transportes diários, intervenções cirúrgicas dos membros do agregado familiar, férias da família, tudo de acordo com o padrão de vida do casal, a sua situação económica e os usos.
Quando nos referimos a despesas escolares dos filhos queremos, evidentemente, significar as despesas normais e correntes em estabelecimento de ensino no local onde habita o casal, sem prejuízo de que, para casais de elevados rendimentos, mesmo as despesas escolares e estadia dos filhos no estrangeiro, em escolas de prestígio e com propinas de montante apreciável, se possam englobar no conceito de encargos normais da vida familiar.
As dívidas contraídas em benefício de filhos havidos antes do casamento e não declarados no momento do casamento: Dívidas comuns ou exclusivas?
O n.º 4.º do art.º 61 do CF consagra que os alimentos devidos aos descendentes comuns, bem como os de cada um dos cônjuges havidos antes do casamento, são encargos normais da vida familiar, ainda que o alimentado viva em economia separada. Nesta disposição se encontra o centro dessa reflexão, pois os encargos da vida comum responsabilizam ambos o cônjuge, o que nos leva a refletir se devemos entender ser assim independentemente da situação, desde que se verifique os requisitos estabelecidos no artigo supracitado. Essa seria se calhar a posição legal a ser adoptada.
Na realidade angolana é comum existirem casos em que a existência de certos filhos por parte de um dos parceiros é desconhecida pelo outro parceiro. Consequentemente a existência desses filhos não chega a ser declarada pelo seu progenitor durante o processo preliminar do casamento.
O regulamento do casamento, Lei n.º 11/85, de 28 de outubro, no seu art.º 3.º alínea e), estabelece que na declaração do casamento deve constar a indicação de alguns deles ter filhos.
Qual poderá será a consequência caso um dos nubentes não proceda a indicação mesmo tendo filhos? Terá alguma consequência jurídica relevante? Poderá ser causa suficiente para a nulidade do casamento? As dívidas contraídas a favor desses filhos serão consideradas comuns?
É possível que diante desta situação se invoque um vício da vontade (art.º 65.º al. b, CF), pois a vontade de celebrar o casamento existe, foi feita a declaração, mas é possível que se diga que ela estava viciada na sua formação ou na sua liberdade de expressão. Fazendo recurso as normas do Código Civil, uma vez emitida a declaração de vontade, prevalece a presunção de que esta é valida e isenta de quaisquer vícios e, portanto, quem alegar o vicio tem sobre si o ónus de prova da sua existência. Sendo assim, o erro e a coação são os vícios de vontade a serem considerados como relevantes em matéria que afecta o mútuo consentimento no casamento.
O erro pode incidir sobre a identidade física do outro nubente ou sobre as suas qualidades essenciais que podem incidir sobre aspectos de natureza física ou moral. Na reflexão em analise parte-se do princípio de que existe uma falsa representação da realidade sobre as qualidades de natureza moral do outro nubente, aonde ele representa uma qualidade essencial que no caso é a honestidade e a boa-fé do outro nubente que na realidade não existiu no momento da celebração do casamento, pelo facto de não ter feito a declaração do filho.
Quero aqui espelhar algumas situações aonde não há uma declaração da existência do filho, mas em circunstâncias diferentes:
A primeira é aquela em que o nubente sabendo da existência do filho, deliberadamente não faz a declaração de existência do mesmo durante o processo preliminar do casamento;
A segunda é aquela em que o nubente desconhece a existência do filho e por isso não faz a declaração da existência do mesmo durante o processo preliminar do casamento, tendo conhecimento da existência do filho apos a celebração do casamento;
A terceira é aquela em que o nubente da a conhecer ao outro nubente a existência do filho, mas durante o momento do processo preliminar do casamento não faz a declaração da existência do mesmo.
Não me parece justo dizer que a resposta deva ser igual para todas as situações, pois algumas, devido as suas especificidades carecem de um exercício normativo e interpretativo mais amplo.
Em minha opinião, para a primeira situação as dívidas devem ser consideradas exclusivas. pois a “falta de respeito e consideração” que se teve para com o outro nubente deve ser relevada, nota-se a clara intenção de ocultar a existência de tal filho ao outro nubente, que tipo de comunhão de vida se quer constituir quando ela tem na base “blocos falsos”, claramente não existe intenção do nubente de trazer esse filho para a vida comum do casal. Nessas circunstâncias parece-me inconcebível que se responsabilize o outro nubente pelas dívidas feitas a favor desses filhos.
A questão que talvez se pode fazer aqui é a de se saber que culpa têm os filhos que estiverem nessa situação, certamente nenhuma, certamente o interesse maior aqui em causa são os interesses do menor, mas ate que ponto esses interesses podem ou devem transbordar ate a esfera jurídica do outro nubente diante dessa situação especifica? Claramente há ainda um enorme exercício normativo e doutrinário a ser feito diante dessa matéria.
Quanto à segunda situação, em que até o cônjuge desconhece a existência de tal filho, por motivos diversos, e passa a conhecer momentos apos a celebração do casamento, penso que as dívidas contraídas devam ser consideradas comuns, pois aqui não se pode dizer existir uma falsa representação de qualidades essenciais do cônjuge, pois nem ele tinha conhecimento da existência do filho, logo, ele não procedeu com desonestidade para com o outro cônjuge, ele procedeu em juízo normal, então é necessário que se pondere essas situações. Poderia falar sobre uma solução mais intermediaria para esse caso, como a possibilidade conceder ao outro cônjuge a faculdade de decidir aceitar ou não compartilhar essa dívida com o seu cônjuge, mas é notório não existirem pernas para que essa teoria ande.
Para o terceiro caso também é de minha opinião que as dívidas contraídas diante dessas circunstâncias sejam consideradas comum, pois o outro nubente teve o conhecimento da existência do filho, então já tem uma noção daquilo em que se vai meter, podemos aqui falar existir uma aceitação tacita de tais condições. Não me parece exagerado dizer existir um consentimento por parte do outro nubente.
Mas apesar de tudo que foi dito por mim reconheço que tais elações não são consideradas por mim completas ao todo, por isso lanço o desafio para a comunidade académica de explorar mais a fundo sobre o assunto. Certamente a posição legal será a de entender ser uma dívida comum do casal independentemente da situação, desde que se verifique os requisitos estabelecidos.
Bibliografia consultada
Código da Família
Lei n.º 11/85, de 28 de outubro
Antunes VARELA, Direito da Família, Volume I, Lisboa, Livraria Petrony, 1999, 5.ª edição.
Cristina M. Araújo DIAS, Do Regime da Responsabilidade por Dívidas dos Cônjuges, Coimbra Editora, 2009.
F. Pereira COELHO e Guilherme De OLIVEIRA, Curso de Direito da Família, Volume I, Introdução, Direito Matrimonial, Coimbra Editora, 2008, 4.ª edição.
Jorge Duarte PINHEIRO, Direito da Família Contemporâneo, Lisboa, AAFDL, 2009, 2.ª edição.
Maria Do Carmo MEDINA, Direito da Família.
[1] Estudante do 4º ano da Faculdade de Direito da Universidade Católica de Angola.
[2] Cfr. DIAS, ARAÚJO, CRISTINA, “Da responsabilidade por dívidas dos cônjuges”, Centro de Direito da Família.
[3] Vide artigo 49. º e seguintes do Código de Família, doravante CF.
[4] Cfr. COELHO, F. Pereira e OLIVEIRA Guilherme, Curso de Direito da Família, Volume I, Introdução, Direito Matrimonial, Coimbra Editora, 2008, 4.ª edição, p. 408 e 409.
[5] Idem.
[6] VARELA, Antunes, Direito da Família, Volume I, Lisboa, Livraria Petrony, 1999, 5.ª edição, p. 399 e 400.
[7] PINHEIRO, Jorge Duarte, Direito da Família Contemporâneo, Lisboa, AAFDL, 2009, 2.ª edição, p. 591
[8] CRISTINA, op. cit.