A LEI DE REVISÃO CONSTITUCIONAL: ALGUNS ASPECTOS POSITIVOS
Próspero de Almeida[1], Luanda (Angola).
Introdução
No dia 02.03.2021, o Presidente da República, Sua Excelência João Manuel Gonçalves Lourenço, surpreendendo a Nação (e apesar de rumores anteriores), anunciou publicamente a sua proposta de alteração “pontual” da Constituição. As 18h do mesmo dia, em jeito de “fast & furious”, o Ministro de Estado e Chefe da Casa Civil da Presidência da República, Adão de Almeida, apresentou, em conferência de imprensa, os pressupostos da proposta de alteração “pontual” da Constituição anunciada pelo Presidente da República.
No dia 18.03.2021, a proposta do Presidente da República foi apresentada no Plenário da Assembleia Nacional pelo Ministro de Estado e Chefe da Casa Civil da Presidência da República.
Em 22.06.2021, já após algumas alterações na proposta original de revisão constitucional (como a questão da soberania dos Tribunais que levantou um aceso debate), o Plenário da Assembleia Nacional, em votação final global, aprovou a Lei de Revisão Constitucional/LRC que, em seguida, foi remetida ao Presidente da República que requereu a fiscalização abstracta preventiva da constitucionalidade da LRC junto do Tribunal Constitucional.
Em 09.08.2021, o Tribunal Constitucional exarou o acórdão n.º 688/2021, que analisou a constitucionalidade da LRC, tendo a declarado conforme a Constituição, salvo no que concerne aos Tribunais Superiores remeterem à Assembleia Nacional e para conhecimento, relatórios anuais de actividade, por, no entender do Tribunal Constitucional, violar a independência dos Tribunais e a separação e interdependência dos Órgãos de Soberania (limites materiais constantes das als. i) e j) do art. 236.º/CRA).
Em 13.08.2021, após se ter expurgada as normas julgadas inconstitucionais e alguma ligeira alteração a Lei anteriormente aprovada, o Plenário da Assembleia Nacional voltou a aprovar a LRC, tendo remetido ao Presidente da República que o promulgou no mesmo dia, tendo sido publicada no dia 16.08.2021, como Lei n.º 18/21, de 16 de Agosto de 2021 – LEI DE REVISÃO CONSTITUCIONAL / PRIMEIRA REVISÃO CONSTITUCIONAL 2021.
Após termos feito alguma leitura da referida lei, entendemos por bem apresentar, de forma resumida e sem muito rigor científico, os pontos que julgamos positivos nesta primeira revisão constitucional. Por agora, não nos propusemos a falar dos pontos negativos, a qual falaremos em outra ocasião, havendo oportunidade. Feita esta longa introdução, avancemos então para as notas que, a nosso ver, são positivas na LRC.
- Banco Nacional de Angola (art. 100.º)
- O reforço dos poderes do BNA
Já compete ao BNA assegurar a estabilidade do sistema financeiro (n.º 1 do art. 100.º/LRC), competência que anteriormente pertencia ao Conselho Nacional de Estabilidade Financeira (CNEF), extinto pela actual Lei do Regime Geral das Instituições Financeiras (art. 29.º/LRGIF). O BNA não apenas “participa na definição da política monetária e cambial” (como decorria da redacção do n.º 1 do art. 100.º da CRA/2010), é agora a “autoridade monetária e cambial” (n.º 2 do art. 100.º/LRC);
- A previsão constitucional da sua independência
A CRA/2010 não estabelecia, pelo menos de forma expressa, a independência do BNA e a qualificação da sua natureza – a qualificação enquanto órgão da Administração Indirecta (instituto público ou empresa pública) ou da Administração Independente era bem discutível. Agora é certo, BNA é órgão da Administração Independente.
- Nomeação do Governador do BNA
Já se prevê uma espécie de “sabatina” do Parlamento. O candidato proposto pelo Presidente da República/PR só será nomeado (pelo PR) após a audição do Parlamento. Embora o relatório-parecer resultante da audição não pareça ser vinculativo, contudo, já é algum passo que foi marcado e, na prática, a audição poderá condicionar bastante o poder de nomeação do PR e talvez permita a “despolitização” do candidato (o nomeado poderá vir a ser mais pelo mérito e idoneidade para o exercício da função – a audição servirá para aferir isso também – do que pela mera confiança política).
- A exoneração condicionada ao disposto na Lei
No texto constitucional anterior, quer a nomeação quer a exoneração era um acto discricionário do PR, não feito “nos termos da Lei”. No caso da nomeação, já acima se viu que há uma ligeira redução da discricionariedade do PR. O novo texto da al. j) do art. 119.º também condiciona a exoneração ao disposto em Lei, o que significa que se reduzirá bastante a discricionariedade (ou poderá mesmo se acabar com ela) nesta questão, reforçando os poderes do BNA e a independência do seu funcionamento – vê-se a ideia de fazer o BNA funcionar com cada vez menos interferência política.
2. Autarquias Locais, princípio da Autonomia Local e Administração Pública
- O OGE deixará de estimar o nível de receitas a obter e de fixar os limites de despesas autorizadas, em cada ano fiscal, para as Autarquias Locais (o que nunca fez na prática, uma vez que as Autarquias ainda não foram implementadas).
A redacção anterior do n.º 2 do artigo 104.º (OGE) não fazia muito sentido, já que a parte final fazia parecer que o OGE financiaria todas as despesas das Autarquias Locais, o que não “casava” muito bem com o princípio da autonomia local que engloba a autonomia financeira.
O Estado financia subsidiariamente as Autarquias Locas, uma vez que elas têm receitas próprias – o OGE não é [a principal] fonte das suas receitas.
Com a ideia de autonomia local, dentro do seu corolário da autonomia financeira, também não fazia sentido ser o OGE a estimar o nível de receitas a obter e fixar os limites de despesas autorizadas, em cada ano fiscal, para as Autarquias Locais, já que a sua autonomia financeira implica em poder de elaboração de seu orçamento, sem o qual nem se pode falar verdadeiramente de autonomia local.
Portanto, a redacção do n.º 3 do art. 104.º/LRC nos parece mais aceitável e “casar” perfeitamente com o princípio da autonomia local, já que neste caso, o OGE apenas apresentará “a previsão de verbas a transferir para as Autarquias Locais, nos termos da lei.”
- Extensão do princípio da autonomia local para outras formas de organização do poder local e não apenas as Autarquias Locais (como fazia a CRA no n.º 2 do art. 214.º em clara contraposição ao n.º 2 do art. 213.º que previa outras formas organizativas do Poder Local além das Autarquias Locais, não fazendo sentido restringir o princípio da autonomia local apenas a estas). Cfr. n. 3 do art. 214.º/LRC;
- Definição clara das dimensões do princípio da autonomia local (organizativa, regulamentar, administrativa, financeira e patrimonial, n.º 2 do art. 214.º/LRC);
- Expressa consagração da natureza da tutela exercida pelo Presidente da República aos órgãos da Administração Autónoma do Estado: se antes poderia se levantar alguma dúvida, agora está expresso – a tutela é de legalidade (al. d) do art. 120.º/LRC);
- Adição de um artigo (198.º-A/LRC) que estabelece o âmbito da Administração Pública (Directa, Indirecta, Autónoma e Independente).
3. Presidente da República (PR) e Vice-Presidente da República (Vice-PR) e Assembleia Nacional (AN)
- Clara distinção entre inelegibilidades e impedimentos. No texto constitucional anterior, situações de impedimentos estavam classificadas como inelegibilidades (esta última é permanente e àquela é temporária, vigorando até ao fim da situação/circunstância que o provoca). Cfr. Art. 110.º e 145.º/LRC.
- Impossibilidade de um PR concorrer ao pleito eleitoral em caso de sua auto-demissão política no decurso do segundo mandato. Essa nova inelegibilidade é de louvar já que impede que o PR, no meio ou no final de um segundo mandato, venha a usar-se do mecanismo da auto-demissão política para conseguir um terceiro mandato, fraudando a Constituição. Cfr. al. d) do art. 110.º/LRC;
- O impedimento dos membros dos órgãos da Administração Eleitoral Independente. Al. d) do n.º 3 do art. 110.º e al. d) do n.º 2 do art. 145.º/LRC.
Lembram-se da problemática que se levantou nas eleições gerais de 2017? Sobre o actual Vice-PR, na altura, Ministro da Administração do Território (órgão administrativo responsável pelo processo de registo eleitoral), poder concorrer para Vice-PR? Levantava-se a questão exactamente por causa do texto constitucional que colocava o impedimento (erroneamente se dizia inelegibilidade) para os membros dos órgãos da Administração Eleitoral, não estabelecendo expressamente que se trata da Administração Eleitoral Independente.
A LRC deixa expresso que não se trata dos membros de todos os órgãos administrativos que participam no processo eleitoral, mas apenas dos membros dos órgãos da Administração Eleitoral Independente, solução que nos parece mais acertada.
- Em caso de impedimento definitivo simultâneo do PR e do Vice-PR, antes da tomada de posse, os substitutos a designar pela “força política” vencedora devem vir da lista de Deputados eleitos pelo círculo nacional. N.º 5 do art. 132.º/LRC.
Tal solução parece mais acertada que a do texto anterior, já que, naquele caso, os substitutos poderiam vir da lista de Deputados eleitos no círculo nacional ou provincial. A legitimidade democrática dos substitutos eleitos no círculo provincial, para governação a Nação toda, é bastante questionável.
- Necessidade de aprovação, pelo Tribunal Constitucional, da designação feita em caso de impedimento definitivo do PR ou do Vice-PR (n.º 6 do art. 132.º/LRC), o que garante um maior controlo da conformidade do processo de designação dos substitutos.
- A retirada do Presidente do Tribunal Constitucional do Conselho da República/CR (al. c) do art. 135.º/LRC), já que este órgão tem natureza pública e convém afastar cada vez mais o Poder Judicial do Poder Político. Caso seja necessário alguém do Poder Judicial participar da reunião do CR, participará a convite e tendo em conta o tema agendado.
- Aumento de número de cidadãos a nomear pelo PR para o CR e possibilidade de, em função dos temas agendados, convidar outras entidades não pertencentes ao CR para participarem na sua reunião (n.º 3 do art. 135.º/LRC), pois, como diz a sabedoria bíblica, “Não havendo sábios conselhos, o povo cai, mas na multidão de conselhos há segurança.” Provérbios 11:14.
- Limitação dos actos do PR, em final de mandato, circunscreverem-se aos actos de gestão corrente da função executiva, sem prejuízo de se ultrapassar tal limite em caso de necessidade e urgência devidamente fundamentada (art. 116.º-A/LRC).
Penso que estamos lembrados que o anterior PR, em final de mandato, praticou um acto que vinculava o novo PR – autorizou a concessão do Porto do Dande a uma empresa ligada a sua filha (tal caso, com a alteração dos nomes dos intervenientes, serviu até de caso prático do I.º MOOT COURT ARBITRAL DE LUANDA, a qual participamos e vencemos pela equipa da Faculdade de Direito da Universidade Católica de Angola). Tal norma vem evitar essas situações.
- Condicionamento de certos poderes do PR, reduzindo o grau de discricionariedade do seu exercício (cfr. ponto 1).
- Reforço das competências de controlo e fiscalização da AN (als. f) a h) do n.º1 e n.ºs 2 a 4 do art. 162.º/LRC).
Matérias como análise da execução trimestral do OGE, audição, pela AN, dos Auxiliares do Titular do Poder Executivo (com prévia solicitação ao PR) e a criação de CPI´s para inquéritos de situações concretas resultantes da actividade da Administração Pública, ganharam dignidade constitucional.
- Recepção, pela AN e para conhecimento, de relatórios de actividades anuais da PGR, do BNA, da Provedoria de Justiça e da Administração Eleitoral Independente, o que permite maior controlo popular (o Parlamento é o representante do povo por excelência). N.º 2 do art. 163.º/LRC.
K) Reforço do procedimento de aprovação das leis de base (n.º 2 do art. 169.º/LRC). Já não se exige apenas a maioria simples para aprovação da lei de base, mas se exige uma maioria qualificada. Entende-se tal solução, tendo em conta que uma lei de base precisa ter valor reforçado, uma vez que define as linhas mestras da política porque se deve reger a legislação numa certa área de actividade. A legislação complementar, geralmente, se deve conformar a ela, pelo que a sua aprovação não pode se dar do mesmo jeito que as demais leis.
4. Poder Judicial e Provedor de Justiça
- Alteração da redacção do n. 1 do art. 174.º de “os Tribunais são o órgão de soberania…” para “os Tribunais são Órgãos de Soberania…” Esta última redação é a mais apropriada, uma vez que não é o conjunto dos Tribunais que constitui um Órgão de Soberania, mas cada Tribunal em si é um Órgão de Soberania;
Aqui cabe acrescentar uma nota: A proposta original da LRC pretendia exactamente retirar a ideia de cada Tribunal em si ser um órgão de soberania, contudo, já no Parlamento e em discussões na especialidade, tal foi reformulado e saiu essa grande pérola que corrigiu inclusive o texto constitucional anterior, deixando bem claro e acima de qualquer dúvida que cada Tribunal [sozinho] é um Órgão de Soberania.
- Conselho Superior da Magistratura Judicial: Clarificação da al. b) do n.º 1 do art. 184.º – o CSMJ não elege todos os Juízes do Tribunal Constitucional como dava entender a redacção anterior, elege alguns (no caso, 2) e a actual redacção apresenta-se mais clara que a anterior.
Consagração constitucional da competência do CSMJ em matéria de elaboração da proposta de orçamento para os Tribunais de Jurisdição Comum, representação dos referidos Tribunais no processo de discussão e elaboração do OGE, supervisão da execução do orçamento dos Tribunais da Jurisdição Comum e gestão do seu pessoal administrativo (als. g), h) e i) do art. 184.º/LRC);
Os Juízes Presidentes dos Tribunais Superiores [fora da jurisdição comum] participam agora das reuniões do CSMJ com direito à palavra, mas sem direito ao voto (n.º 3 do art. 184.º).Remoção da Provedoria de Justiça do Título referente aos Órgão Essenciais à Administração da Justiça (mais próximo do Poder Judicial) para o Título V, referente a Administração Pública, uma vez que este é um órgão administrativo, no caso, um órgão da Administração Independente.
5. Sufrágio
- Extensão do exercício do direito ao voto à todos cidadãos que estejam no exterior do país e não apenas àqueles que estejam por motivos específicos (estes não eram/são mais nacionais que aqueles, não havendo justificativas para continuar a privar aqueles do exercício de um direito fundamental). N.º 1 do art. 143.º/LRC.
- Clara definição da competência da Administração Directa do Estado em matéria de realização do registo eleitoral (art. 107.º-A/LRC).
Esta questão gerou um certo debate público em 2016 e 2017. A questão girava em torno de saber se era constitucional atribuir competência ao Ministério da Administração do Território/MAT para condução do processo de registo eleitoral ou se, pelo contrário, tal competência deveria caber a CNE? A discussão se levantou muito por ser véspera de eleições, havendo suspeitas de fraudes, haja vista que quem dirigia o MAT era membro de um partido político concorrente as eleições (o próprio titular da pasta concorria pela lista do seu partido).
O TC foi chamado a se pronunciar sobre a questão, o que fez no seu acórdão n.º 412/2016 – e a LRC vem colocar no texto constitucional o que resultara da decisão do TC, conferindo expressamente competência à Administração Directa do Estado de conduzir o processo eleitoral.
- Previsão constitucional de um regime transitório de registo eleitoral presencial nas localidades sem acesso aos serviços de identificação civil (art. 241.º-A/LRC), constituindo-se assim numa excepção aceitável e transitória ao princípio da oficiosidade do registo eleitoral, princípio este que “significa que compete aos órgãos e serviços do Estado realizar a inscrição dos cidadãos maiores e mantê-lo permanente e actualizado, independentemente da iniciativa dos eleitores” (acórdão n.º 412/2016, TC) e servindo de garantia que ninguém será privado do direito fundamental ao voto em razão da falta de acesso aos serviços de identificação civil do Estado (uma excepção que visa a efectivação do próprio direito ao voto).
6. Promoção da Propriedade Privada e Livre Iniciativa (art. 14.º/LRC)
O Estado já não se limita a respeitar (“non facere”: não perturbar, não violar) e proteger (impedir ou criar mecanismos que impeçam a violação por parte de particulares), mas agora passa também a promover (facere) a propriedade privada e a livre iniciativa económica e empresarial, o que significa que o Estado deverá criar políticas, instrumentos e/ou mecanismos que provoquem (ou “venham a gerar”), impulsionem, incentivem, estimulem a propriedade privada e a livre iniciativa económica e empresarial.
Conclusão
A LRC, sem prejuízo de eventuais críticas que lhe possam ser feitas, tem muitos aspectos positivos no que diz respeito aos direitos fundamentais (sufrágio, propriedade privada e livre iniciativa económica e empresarial), organização política do Estado (os Órgãos de Soberania: Presidente da República, Assembleia Nacional e os Tribunais), Administração Pública (BNA, Provedoria de Justiça, Autarquias Locais). É verdade que em alguns aspectos era possível (e até expectável) ir mais longe, todavia, desde que a proposta de revisão constitucional foi apresentada ficou claro que não se tratava de uma revisão profunda, com mudanças substanciais, mas, como foi apelidada pelo órgão proponente, revisão pontual da Constituição, fazendo leves mudanças (algumas até profundas, mas não tão profundas como esperada e/ou desejada por muitos).
E um aspecto muito positivo na LRC e de grande destaque, é o facto de ter tratado de algumas questões que chegaram a gerar certo conflito (como dos poderes do Presidente da República em fim de mandato e a competência da Administração Directa do Estado de conduzir/dirigir o processo de registo eleitoral) – podemos não concordar com algumas soluções apresentadas (e não foi nossa intenção fazer isso aqui), mas louvamos a atitude de procurar definir um caminho na CRA que não venha a gerar dúvidas e/ou incertezas na prática (novamente, soluções não isentas de críticas).
[1] Jurista.