A INSTRUÇÃO PREPARATÓRIA À LUZ DO PROCESSO PENAL ANGOLANO[1]
Preparatory instruction in the light of the angolan criminal procedure
Flaviano FRANCISCO*[2], Luanda – Angola.
*Especialista em ciências jurídico-criminais
“A instrução preparatória é fase de investigação e recolha de provas ou de formação do corpo de delito. Ela abre-se com a notícia ou conhecimento de que foi cometida uma infração. Conhecimento que pode ser direto (oficioso) ou obtido através da informação de terceiras pessoas”.
VASCO GRANDÃO RAMOS em “A Instrução Preparatória do Processo”.
SUMÁRIO: Introdução. 1. A instrução preparatória. 2. Características da instrução preparatória. 3. A instrução preparatória pode ser dispensada? 4. Prazos legais da instrução preparatória. 5. Fins da instrução preparatória. 6. O Ministério Público e a instrução preparatória. Conclusão. Referências bibliográficas.
RESUMO:
O presente trabalho centra-se na análise da fase inicial do Processo Penal Angolano (doravante identificado por PPA), mais precisamente na Instrução Preparatória, que representa o embrião de toda a investigação criminal, pois é através desta investigação que se realiza um conjunto de actos devidamente preordenados que será averiguada a existência do crime e, em caso afirmativo, na determinação dos seus agentes e suas devidas responsabilidades. Assim, a presente investigação assentará na utilização das principais disposições legais em vigor no país, bem como das que regulam toda a fase inicial do Processo Penal Angolano.
Palavras-chave: Direito Processual Penal; Instrução Preparatória; princípios; investigação criminal.
Introdução
A razão deste estudo é a necessidade de compreender e esclarecer a natureza do Sistema Jurídico-processual Angolano, visto que é a partir da Instrução Preparatória que se inicia o choque com os direitos fundamentais dos cidadãos e, neste contexto, é muito importante conhecer a entidade e/ou órgão responsável pela Instrução Preparatória porque há momentos em que surgem suspeitas sobre a legitimidade na prática de alguns actos por parte de alguns órgãos especializados aos quais estão atribuídos funções de investigação criminal e instrução processual.
Considera-se que, do ponto de vista doutrinário, o Processo Penal em vigor em Angola tem um carácter misto. Isto é, misto devido à uma imposição prevista no Código de Processo Penal de 1929, bem como nas principais leis em vigor no país, mais precisamente o Decreto-Lei n.º 35 007 de 13 de Outubro de 1945 (sendo o Código de Processo Penal de 1929 e este último Decreto revogados pelo actual Código de Processo Penal, através da Lei 39/20 de 11 de Novembro).
Assim, também podemos considerar que a evolução histórica desse tipo de processo (misto) ocorreu porque o processo acusatório foi considerado excessivamente liberal e inadequado para defender os interesses do Estado, pois favorecia os criminosos e, consequentemente, aumentava o índice de criminalidade. E, por outro lado, o processo inquisitório foi visto como excessivamente segmentário porque acumulava a função de investigar, acusar e julgar numa única entidade, impedindo assim qualquer forma de defesa do acusado, visto que as provas sempre foram obtidas sob tortura e ameaças. Deve-se notar também que no curso histórico desses processos (acusatório e inquisitório), o Estado e a Igreja preferiram o processo inquisitório porque podiam controlar os seus poderes e interesses por meio dele.
Posteriormente, foi estruturado um novo sistema que não afectou gravemente as garantias individuais do arguido, mas que de alguma forma equilibrou a estrutura do processo penal, uma vez que com a sua implementação (no caso o processo misto) foi possível observar o respeito pelo direito à defesa justa e equitativa dos acusados (igualdade de armas entre os sujeitos processuais), mantendo assim os principais valores que definem o Estado de Direito e a democracia.
Foi assim que, em 1811, surgiu o sistema misto (agregado no Code de Instruction Criminelle francês), que teve um carácter inquisitório na fase inicial e que se apresentou como secreto e escrito, e um carácter acusatório na fase de julgamento, com a presença clara do princípio da publicidade, oralidade e contraditório. Esse processo prevaleceu sobre os demais (processo acusatório e processo inquisitório) porque houve efectivamente uma separação entre a entidade que acusa e a entidade que julga, garantindo assim a imparcialidade processual e a garantia constitucional de todos os direitos fundamentais.
Assim, não restam dúvidas de que o Direito Processual Penal Angolano inclui uma figura acusatória e inquisitória, em consonância com o texto constitucional, o que faz com que a fase inicial do processo (a Instrução Preparatória) se leve a cabo com uma dinâmica própria de um sistema mitigado, sob orientação do Ministério Público que inicia os seus trabalhos a partir da notitia criminis, desencadeando assim uma fase de investigação que se destina, como já salientamos, à descoberta dos seus agentes e as circunstâncias concretas e pessoais em que aconteceu o crime.
A Instrução Preparatória, para o Prof. Vasco A. Grandão Ramos, “é a fase de investigação e coleta de evidências ou de formação do corpo de delito”[3].
De acordo com o artigo 302.º do actual Código de Processo Penal, a Instrução Preparatória compreende a primeira fase do Processo Penal em Angola, que se desenrola sob orientação do Ministério Público e corresponde a “um conjunto de diligências no sentido de recolher provas para a constituição do corpo de delito com a perspectiva última de analisar os elementos de indiciação essenciais para fundamentar ou não a acusação”. Este artigo também destaca que a Instrução Preparatória visa não só as etapas conducentes à culpa dos arguidos, mas também aquelas que concorrem para demonstrar a sua inocência e irresponsabilidade, aplicando-se, assim, todas as disposições do Código de Processo Penal relativas ao corpo de delito que não entram em conflito com as disposições deste diploma.
E, este conjunto de etapas só se inicia com a notícia ou conhecimento de que foi cometida uma infracção, que pode ser do conhecimento direito das autoridades legais (neste caso de carácter oficioso) ou através de informações obtidas por terceiros. Nesse sentido, deve-se destacar que a mera suspeita de crime é suficiente para desencadear a abertura da Instrução Preparatória. Porém, essa suspeita deve ser baseada em informações objectivas, com o mínimo de credibilidade possível.
A Instrução Preparatória constitui uma fase pré-judicial, predominantemente escrita e secreta e, sem legislação em contrário, a sua direcção está a cargo do Ministério Público como analisaremos mais adiante.
Nos termos do artigo 97.º do diploma supra, encontramos o seu carácter secreto, o que indica que nem o arguido, nem o seu advogado, em princípio, podem consultar o processo, mas não estão impedidos de participar na investigação. Ou seja, o que pode acontecer é a prática de alguns actos, tais como: requerer provas; comprovar ou reunir documentos específicos; nomear testemunhas e tudo o que for necessário para a descoberta da verdade material. Por outro lado, e de acordo com o artigo 102.º da actual redação do Código de Processo Penal, também é possível a consulta do processo e obtenção de certidões por sujeitos ou participantes processuais.
Leia o artigo completo no documento abaixo:
[1] Artigo JuLaw n.º 009/2022, aos 24 de Janeiro de 2022.
[2] Conta JuLaw: http://julaw.ao/user/flaviano29/
[3] RAMOS, Vasco António Grandão – Direito Processual Penal: Noções Fundamentais, p. 279.