Você está visualizando atualmente A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O SALÁRIO MÍNIMO NACIONAL REAJUSTADO
foto: guardiao-ao

A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O SALÁRIO MÍNIMO NACIONAL REAJUSTADO

Trata-se de uma reflexão em torno salário mínimo nacional reajustado e a sua relação com  o princípio da dignidade da pessoa humana constitucionalmente consagrado. Olhamos para o salário enquanto uma forma de concretização da dignidade humana. Trouxemos também para a reflexão as normas constitucionais que consagram a justa remuneração e a valorização profissional.

Notas introdutórias

O Homem é por natureza insaciável, um ser cujas ambições o colocam numa situação de constante insatisfação e vontade de alcançar novos e mais altos patamares, mas além das ambições humanas existem um conjunto de condições básicas que se esperam que este tenha para que possa viver de forma digna.

A dignidade da pessoa humana é, a par da legalidade, um dos limites dos actos do poder público, sendo certo que um dos fins deste poder é o de prosseguir o interesse público, pois, entende-se que este interesse é o de proporcionar melhores condições de vida à população.

Melhores condições de vida são metas genéricas alcançáveis mediante efectivação de direitos e criação de um conjunto de serviços que permitam ter acesso aos serviços sociais, designadamente: à saúde e educação de qualidade, segurança, trabalho e, acima de tudo, uma remuneração justa e suficiente para fazer face às necessidades e anseios do trabalhador.

A frase “o trabalho dignifica o Homem” é usada, geralmente, para designar que com o que se ganha do trabalho dá para se suprir às necessidades básicas e arquitectar a realização das necessidades de auto-realização, ou seja, o trabalho enquanto direito económico é uma das formas que permite o homem realizar-se como tal, sendo fim em si mesmo e não meio utilizado por outros.

O reajuste salarial que se deu recentemente não levou em consideração o contexto sócio-económico, sendo que por mais que se tenha aumentado cerca de 30% do valor do salário mínimo, este, olhando para a situação actual, ainda é bastante insuficiente para dar poder de compra e proporcionar melhores condições de vida às famílias.

Trata-se de um artigo de opinião em que dou a minha opinião sobre o salário enquanto uma forma de concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, referindo-se ao caso específico do recente reajuste do salário mínimo nacional.

A Dignidade da pessoa humana e o salário mínimo nacional reajustado

Portal Oficial do Governo da República de Angola - Notícias - DECRETO  PRESIDENCIAL PUBLICADO

O princípio da dignidade da pessoa humana constitui um dos mais importantes, quiçá mesmo o princípio máximo de um Estado Democrático de Direito. No contexto angolano, a dignidade da pessoa humana tem sua consagração a partir da Lei Constitucional da República Popular de Angola de 1975, de forma explícita no artigo 17.º e de forma implícita ao longo de vários artigos como 1.º, 9.º, 18.º, 23.º, 25.º, 26.º, 27.º, 28.º entre outros. Por sua vez, na Lei Constitucional da República de Angola de 1978, o princípio da dignidade da pessoa humana permaneceu explícito no artigo 17.º e espalhado de forma implícita ao longo de outros artigos como o 1.º, 18.º, 23.º, 24.º, 25.º, 26.º, 27.º, 28.º, 29.º entre outros.

Na Lei Constitucional de 1992 a dignidade da pessoa humana é realçada logo nos artigos 2.º e 20.º de forma explícita e de forma implícita nos artigos 9.º, 18.º, 22.º, 23.º, 24.º, 25.º, 29.º, 30.º, 31.º, 32.º, 34.º, 38.º, 39.º, 40.º, 44.º, 45.º, 46.º entre outros.

Como se pode ver, com o passar do tempo houve um aumento das normas constitucionais que trouxeram um conteúdo que espelha a importância da dignidade humana e, por se tratar de normas programáticas, a necessidade de o Estado criar políticas públicas e sociais, programas, projectos e acções, bem como um conjunto de condições para que estas sejam efectivadas.

Na moderna Constituição da República de Angola de 2010, doravante CRA, a ideia da Dignidade da Pessoa Humana aparece logo a partir do preâmbulo, sendo reafirmada várias vezes ao longo desta parte do diploma. Aparece, explicitamente, no artigo 1.º no âmbito dos Princípios Fundamentais, voltando a ser mencionada no âmbito dos Direitos, Liberdades e Garantias Fundamentais no que toca o Direito à Integridade Pessoal, no artigo 31.º nº2, bem como no artigo 32.º nº2 concernente ao Direito à Identidade, à Privacidade e à Intimidade e de forma implícita em quase todas as normas da Constituição, pois a Dignidade da Pessoa Humana constitui uma das traves mestras que suportam a CRA.

A pessoa humana é o fundamento, a medida e o fim do direito. A dignidade traz consigo a ideia de ter, poder exercer e exigir um conjunto de direitos que temos pelo facto de sermos pessoas. Trata-se de um conceito indeterminado que é realizado em situações concretas, porém, encontra representação em várias normas, sejam estas do direito público como do direito privado. Se olharmos para o direito público, especificamente o Direito Administrativo, veremos que o princípio da dignidade humana é tido como princípio constitucional estruturante do Direito Administrativo, sendo que este consiste na protecção contra todo tratamento desumano, discriminação odiosa, bem como o dever de o Estado garantir ou assegurar condições mínimas de sobrevivência.

Uma das formas de garantir as condições de sobrevivência, que seria uma maneira de materializar o princípio da dignidade humana, é por intermédio do trabalho. “Enquanto facto, o trabalho figura como objecto do Direito. Traz para o Direito situações importantes a serem consideradas. Enquanto facto económico, assume a posição de conteúdo económico da norma de Direito Económico do Trabalho. Enquanto acto está ligado à ideia de acção e, portanto, à de um agente ou sujeito. (…) Este sujeito que está preso ao chamado custo-benefício, que se expande e compromete toda a estrutura económico-social nas mais variadas dimensões” (de SOUZA, 1994).

O trabalho é tido, constitucionalmente, como um direito e um dever de todos (ver artigo 76.º nº1), sendo que o artigo 76.º nº2 consagra que “Todo o trabalhador tem direito à formação profissional, justa remuneração, descanso, férias, protecção, higiene e segurança no trabalho, nos termos da lei”. O conceito de justa remuneração é aqui tido como um conceito indeterminado que queremos aferir em função do actual contexto angolano onde se evidencia uma subida de preços nos alimentos da sesta básica, ou seja, um aumento estrondoso no custo de vida.

Segundo o jornal Mercado, o custo de vida em Angola aumentou 27,03% em Dezembro de 2021, este que é o pior registo nos últimos quatro anos, isto de acordo com os dados do Índice de Preços no Consumidor Nacional (IPCN), divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE). Continua ainda dizendo que a alimentação e as bebidas não alcoólicas foram os produtos cuja classificação mais contribuiu para o aumento dos preços em Angola, sendo que em termos mensais teve uma variação de quase 3% até o final do ano de 2021. Nos dados da Folha de Informação Rápida (FIR) do INE, Namibe, Huíla e Malanje aparecem como as províncias que tiveram maior variação nos preços com cerca de 2,5%. Luanda, cidade capital e como principal centro de consumo do país, teve uma taxa de aumento de 2,2% em termos mensais (Mercado, 2022).

Nos termos do n.º 3 do artigo 76.º da Constituição, das várias incumbências que cabe ao Estado para assegurar o direito ao trabalho, destacamos aqui a que consta na alínea c) que tem que ver com a valorização profissional dos trabalhadores. Um dos conteúdos que a valorização profissional traz consigo é a remuneração digna e justa, tal como já referimos acima. Nestes termos, justa remuneração seria o salário que pudesse cobrir as necessidades básicas, sendo aquelas que na pirâmide de Abraham Maslow aparecem como Fisiológicas (comida, água…) e de Segurança (emprego, saúde, moralidade, propriedade…).

Recentemente entrou em vigor o Decreto Presidencial nº 54/22 de 17 de Fevereiro, que definiu o salário mínimo nacional em 32.181,15 (trinta e dois mil, cento e oitenta e um kwanzas e quinze cêntimos), este que veio revogar o Decreto Presidencial nº 89/19 de 21 de Março que fixava um salário mínimo nacional de 21.454,10 (vinte e um mil, quatrocentos e cinquenta e quatro kwanzas e dez cêntimos). Olhando para este valor e tendo em conta a valorização profissional imposta pela Constituição e atendendo o actual preço dos elementos da cesta básica, podemos afirmar categoricamente que este salário não constitui uma remuneração justa, não sendo suficiente para a realização das necessidades básicas das famílias angolanas.

Os dados económicos e a situação social, por si só, mostram a fragilidade do poder de compra das pessoas. Sendo que a variação dos preços incidiu, fundamentalmente, nos bens alimentares e nas bebidas não alcoólicas, ou seja, bens de primeira necessidade, bens para a subsistência e sobrevivência. São bens que ajudam ou permitem com que as pessoas tenham uma vida digna ou o mínimo de condições de sobrevivência.

A alínea c) do artigo 21.º da CRA define que uma das tarefas fundamentais do Estado passa por “criar as condições progressivamente para a efectivação dos direitos económicos…”. O termo progressivamente demostra que se trata de uma norma programática, porém não afasta o direito da justa remuneração enquanto direito conexo ao trabalho, ou seja, as condições para que hajam trabalho devem ser criadas em simultâneo com as condições para que hajam remunerações justas.

A dignidade da pessoa humana não pode ser ferida sempre que se quer, é necessário atribuir o valor devido a este princípio e repudiar todas as formas de violação do mesmo. Este princípio é de tamanha importância que constitui limite material à revisão constitucional (ver alínea a) do artigo 236.º da CRA).

Existe uma disparidade em termos de remuneração no contexto angolano, sendo que alguns funcionários de algumas áreas têm boas remunerações, enquanto que outros auferem muito pouco, essa desigualdade torna-se mais espantosa pelo facto de que muito deles têm as mesmas qualificações. Não se pretende sugerir a redução da remuneração daqueles que auferem um bom vencimento, mas sugerir a elevação dos que ganham menos de modos a que haja um equilíbrio. Pois, não se entende que todos contribuímos para o desenvolvimento do país, cada um a seu nível, e tendo as mesmas qualificações e trabalhando todos no sector público, por exemplo, haja grande disparidade em termos de remunerações.

Considerações finais

A dignidade da pessoa humana é um princípio que constitui o limite e fundamento dos actos dos entes públicos, sendo que este é um dos pilares chaves espelhados pela ideologia constitucional. Traduz-se num conjunto de condições básicas necessárias ao homem que, em princípio, devem ser proporcionadas pelo Estado. Tais condições vão desde os serviços sociais nos quais se destacam a saúde, educação, habitação, assistência aos desvalidos, segurança social, trabalho e todos os direitos conexos deste.

O trabalho é, além de direito económico, um direito natural e um dever social do homem. Mais do que o trabalho as pessoas têm o direito de receber uma remuneração justa. A justiça é aqui vista como um vencimento em função e de acordo ao serviço prestado.

Ao definir o salário mínimo nacional, o Executivo acaba também por espelhar a sua valoração para com o trabalhador angolano. O salário não é apenas uma questão de económica ou financeira, acarreta consigo uma dimensão ética, política, filosófica, cultural e social. A partir do “quanto” a pessoa tem como remuneração consegue-se fazer uma presunção (relativa) de quão prestativo o trabalhador é, tal ideia que para a nossa realidade é errónea, sendo que existem muitos funcionários que são excelentes e têm salários miseráveis e vice-versa.

A cesta básica deve ser acessível para todos. Assim sendo, o salário mínimo deve buscar fundamento no actual contexto do mercado, tendo como base e fundamento da sua fixação o preço da cesta básica. Olhando para a realidade concreta, onde verifica-se uma variação nos preços da cesta básica, o salário mínimo nacional base seria de Kz 150 000,00 (cento e cinquenta mil kwanzas). Com este salário seria devolvido o poder de compra às família e proporcionado as condições mínimas de sobrevivência. Proporcionar um salário justo não seria uma questão de bom senso do Executivo, é um imperativo que decorre da Lex Superiori quando consagra que todo o trabalhador tem direito a “justa remuneração” e a “valorização profissional” (artigo 76.º da CRA).

Outro aspecto que não pode ser deixado tem que ver com a necessidade de se equilibrar as remunerações a nível do sector público. No sector privado geralmente a remuneração é baseada na produção e mão-de-obra, característica do capitalismo. Por sua vez, no sector público, existem critérios inexplicáveis, por isso quase todos sonham estar em instituições com AGT e outras, pois sabe-se que desde a remuneração aos privilégios são muito bons comparando com os outros. Não que se deva baixar a remuneração dos técnicos desta agência, pelo contrário, alegra-nos saber que existem profissionais a auferirem um vencimento aceitável, mas que se eleve o dos outros para que se equilibre as remunerações.

Não sendo justa nem dignificante o reajustado salário mínimo nacional, tal como consagra a CRA, estamos perante a uma inconstitucionalidade directa e material. Directa porque, apesar da programaticidade da norma, pode-se verificar no artigo 226.º nº2 da CRA, são inconstitucionais os actos que violem os princípios e normas consagradas na Constituição e aqui podemos ver a dignidade da pessoa humana enquanto princípio constitucional e as normas que abordam sobre a justa remuneração a serem violadas. Material porque existe uma contradição entre o acto normativo (Decreto Presidencial) e o princípio constitucional da Dignidade da pessoa Humana.

Autor: Danilson da Costa de Castro*

*Educador Social; Estudante do 4º ano de Serviço Social no Instituto Superior João Paulo II da Universidade Católica de Angola; Estudante do 3º ano de Direito na Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto.

Deixe um comentário