A ASSEMBLEIA NACIONAL, A COVID-19 E AS MEDIDAS EXECUTIVAS
Leandro Ferreira, Facebook, 01/11/2021
No início deste ano, quando foi proposta a revisão constitucional, apontávamos e aceitávamos como positiva a inclusão no texto fundamental da “situação de calamidade” como terceira via aos estados de excepção, considerando as críticas que já havíamos dirigido a vários diplomas presidenciais, no sentido da sua inconstitucionalidade, bem como a inovação científico-constitucional que se impunha ao regime desse instituto. Já tínhamos antes sugerido a revisão em tal sentido, para adaptar no tempo os fundamentos de tal figura constitucional, que não respondia positivamente aos desafios do presente.
Com tal solução, o Executivo propunha a fiscalização intermédia pela AN, em dois momentos (no início e para fazer cessar a vigência de quaisquer medidas que fossem aplicadas). A solução era óptima (ou, no mínimo, evoluía o quadro vigente à altura de uma total e insindicável liberdade da acção executiva, ao abrigo da opção legislativa infraconstitucional da situação de calamidade), afinal a experiência de longa duração e infinitas renovações do estado de calamidade era inadequada, reprovável, burocrática, procedimentalmente esgotante, perante a natureza excepcional que carateriza estas figuras e a necessidade de as medidas deverem ser sujeitas ao repetido escrutínio parlamentar, até para a sua legitimação (vide a explicação mais detalhada em https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=10220564543687499&id=1350997847 ou http://julaw.ao/situacao-de-calamidade-um-novo-ente-juridico-na-cra-leandro-e-g-ferreira-facebook/)
O Executivo pareceu ter percebido isso. Porém, a Assembleia Nacional recusou aquilo que significaria a legitimação constitucional das medidas que eram tomadas e continuam a ser tomadas. Talvez porque se considerou precipitada essa evolução, sem o devido amadurecimento na ciência jurídica. Talvez até se receasse um cheque em branco, para realidades que se pensava que deviam ser regidas ao abrigo do estado de excepção, com controlo mais apertado e frequente. Talvez até não se tivesse compreendido o que se pretendia. Mas essa recusa devia ter o verso da moeda, pois, sem a terceira, ficavam apenas duas opções.
O que me preocupou(a) foi o que se seguiu. A atitude da Assembleia Nacional devia ter sido a de assumir a gestão do período de crise sanitária, com a imposição de estados de excepção, para que o Executivo efectivasse limitações e condicionamentos aos direitos fundamentais (ou, quando muito, a aprovação de um extenso e renovado pacote legislativo para a generalidade de medidas aplicadas). O que se devia ter seguido era a aprovação/fiscalização legislativa de todos os actos posteriormente praticados, afinal a CRA foi mantida com o regime claro e inequívoco de que a restrição, limitação ou condicionamento de direitos fundamentais, ou mesmo a suspensão de outras disposições da CRA, só devesse ocorrer por meio de lei ou por meio dos estados de excepção (assim decidiram os parlamentares).
Hoje, estão a ser impostas vacinas aos cidadãos por meio de decreto e os senhores deputados nada dizem. Estão a ser impostas limitações de acesso dos cidadãos a serviços públicos por meio de decreto e os deputados nada dizem. Como estes, há muitos outros exemplos.
Até pode ser justificada a solidariedade institucional e responsabilidade social perante a crise pandémica. Mas aquela atitude de rejeição parlamentar não devia significar que os senhores deputados assumissem o seu papel constitucional em decisões como estas? Ou não perceberam o que estavam a decidir na altura e esqueceram-se da CRA hoje?