Dalvan Costa[1]
- A erupção da Sociedade Digital
A revolução digital e o processo de transformação digital trouxeram consigo um conjunto de alterações no modo de produção e no modo de relacionamento interpessoal que conduzem a actual sociedade para o caminho duma Sociedade Digital, ou seja, para uma sociedade em que os modos de produção e de inter-relacionamento sejam primariamente realizados em ambiente digital.
Esse tipo de sociedade, com sinais bem presentes nos nossos dias, privilegia o uso de sistemas ciberfísicos, conduzindo a novos processos de produção (indústria 4.0), a alterações na vida quotidiana (smart homes), ao uso de redes sociais (plataformas) como meio privilegiado de interaçcão político-social e, não menos importante, ao estabelecimento de novos sistemas de vigilância (surveillance capitalism[2]) por parte do Estado e de actores privados[3].
Estas transformações, desafiando modelos tradicionais, operam uma transição duma sociedade hierárquica para uma sociedade heterárquica, com consequências ainda por analisar, implicando um aprendizagem e adaptação contínuas.
Política, saúde, educação, religião, economia e o restante da macro ou infra-estrutura social são todas afectadas por essa revolução digital e todas procuram respostas e soluções para os novos problemas.
Por esta massiva influência do digital o principal e mais eficaz meio regulador da sociedade – o Direito – não pode estar incólume a revolução nem indiferente na oferta de soluções reguladoras para transformações tão significativas.
2. A transformação do Direito pela Técnica
A tecnologia sempre representou um elemento de disrupção no Direito.
Ao longo da história vários são os exemplos – com especial referência para a “invenção” da impressão que permitiu a difusão em massa do conhecimento jurídico[4] – em que o aparecimento de novas técnicas representou um abalo nas estruturas jurídicas obrigando a readaptações com o objectivo de as manter vivas e verdadeiramente relevantes para a sociedade.
Com a tecnologia digital não é diferente.
O advento da tecnologia digital obriga o Direito a lidar com uma “infra-estrutura mais latente, opaca[5]” e de difícil acesso que desafia os seus mais profundos pressupostos.
Dois destes pressupostos, caros ao Direito, são a estrutura hierarquizada da sociedade e a nacionalidade/territorialidade do Direito.
Uma das ideias centrais do Direito, tal como nos chegou da Europa, e representada em primeira mão pelo pensamento constitucional, é a ideia de centralização da produção normativa e dos centros de decisão.
Numa ideia muito simples o Direito – o ordenamento jurídico, conjunto de normas assistidas de coactividade – é concebido de forma hierárquica.
Ao ser concebido de forma hierárquica possibilita também uma organização do poder político hierarquizada permitindo que as decisões mais abrangentes sejam formuladas no topo – topo do poder executivo, topo do poder legislativo, topo do poder judicial.
Fonte: unsplash.com
Se se observa com atenção, na revolução tecnológica o fenómeno é exactamente o contrário: ela permite, e até apela, a uma descentralização do poder possibilitando que cada indivíduo – utilizador é o termo mais adequado – seja ele próprio um decisor e influenciador directo no processo sociopolítico.
É sintomático disto, para se ficar por um exemplo básico, o facto do processo de criação de novos modos de relacionamento financeiro, com o apoio da tecnologia, seja apelidado de “Defi” (descentralização financeira).
Fenómeno parecido e de maior magnitude é o assistido com o advento das redes sociais em que os cidadãos, antes meros intervenientes no processo político através das eleições ou de fórmulas vagas como o princípio da participação, passam eles próprios a actores principais na criação de factos políticos e a acompanhar, quase em tempo real, o desenvolvimento político de determinada sociedade.
Postos nestes termos existe aqui um desafio à estrutura tradicional do Direito e às estruturas de poder, havendo uma mudança do domínio do “político institucional” para o domínio das “relações político-sociais”, implicando uma reorganização quase radical da sociedade.
Uma segunda ideia desafiadora do modelo actual do Directo é a ideia de transnacionalidade do digital.
O Direito moderno foi concebido, e impulsionado, num ambiente de Estado-Nação, sendo produzido, reconhecido como válido e aplicado num determinado território, necessariamente limitado e soberano.
Ele é, simultaneamente, criador e criação do Estado-Nação. Ele existe como produto dum poder soberano territorialmente situado e, ao mesmo tempo, permite a própria configuração formal do Estado na ordem interna e na ordem internacional.
Porém, desde o fim da segunda guerra mundial que o Direito soberano dos estados vem sendo substituído por um outro, chamado Direito das Organizações[6] (ONU, OIT, OMC etc.), que reconhece como fontes válidas de produção de Direito, manifestações diferentes das emitidas pelas entidades do Estado-Nação.
Se este fenómeno do Direito das Organizações já representava um desafio à territorialidade, acresceu-se a isto o facto de empresas multinacionais, e agora plataformas digitais, exercerem uma influência – e até mesmo poder – tão essencial na criação e desenvolvimento do Direito (fenómenos de auto-regulação) que seria ingénuo, e até perigoso, deixá-las de fora da concepção sobre um novo modelo jurídico que seja não mais do Estado-Nação, mas da Sociedade Global.
É assim perceptível que a adopção de novas tecnologias, que criam também novos modelos económicos (como a tese do tecnofeudalismo[7]), conduz a uma crise existencial[8] do Direito do Estado-Nação uma vez que esta tecnologia, e os novos modelos económicos por ela potenciados, são necessariamente transnacionais, não cabendo dentro das fronteiras do Estado tal como o conhecemos[9] e somos “obrigados” a assimilar nas faculdades de Direito.
3. Porquê, então, Direito e Sociedade Digital?
Fica claro que a sociedade e o seu “modo analógico de ser” passam agora a ser regidos por uma técnica que permite agir em ambiente digital.
Esta revolução, como aliás qualquer outra, traz consigo um romper de velhos saberes já instalados exigindo por isso, reforce-se, novos modelos que consigam dar resposta aos problemas ora levantados.
O Direito que hoje conhecemos, que é ensinado nas escolas e aplicados pelos tribunais, sofre dum “profundo mal-estar” provocado por erosões temporais e pela alteração das circunstâncias nas quais ele foi concebido – conforme fica visível na erosão do Estado-Nação como modo privilegiado de produção de normas.
Do ponto de vista do tempo, e da evolução tecnológica, os últimos 20 anos representaram uma vertiginosa intervenção das máquinas no quotidiano humano, ressignificando relações económicas e pessoais.
Será que o Direito, e o nosso em específico, acompanhou essa dinâmica? A resposta é negativa.
Os modos de produção do Direito, os métodos de ensino do Direito e de aplicação do mesmo mantiveram-se conservadores arraigados em bases teóricas de há quase 2 séculos – a base do principal instrumento regulador das relações jurídico privadas, no âmbito dos sistemas de Direito romano germânico, que compreende grande parte da Europa Continental e as ex-colónias em África e na América do Sul, é resumida a uma reprodução dum código napoleónico de 1804 (Code Napoléon) com uma “actualização” germânica em 1900 (Bürgerliches Gesetzbuch – BGB) – sendo hoje o Direito, e o Direito Privado em específico, “um fenómeno que escapa a uma “definição clara[10]”.
Como Direito e sociedade exercem sobre si influências recíprocas, o desenvolvimento da tecnologia transforma a sociedade e obriga o Direito a transformar-se numa constante metamorfose[11] de sentido mútuo.
Com isto presente, o Direito, em modo de sobrevivência, é obrigado a uma ressignificação estrutural com vista a dar resposta aos desafios levantados pela Sociedade Digital, consciente também da imprevisibilidade e da velocidade que a tecnologia é capaz de introduzir mudanças sociais.
Assim, cabe ao novo Direito a construção de novos conceitos e uma regulação satisfatória que combine a defesa das instituições e dos direitos fundamentais com o espaço vital da inovação tecnológica.
Neste sentido, é objectivo dos artigos que terá oportunidade de ler nesta série responder a necessidade de adaptação do Direito aos desafios levantados pela Sociedade Digital.
A existir um novo Direito, o Direito Digital, ela terá de, nas expressivas palavras de Ricardo Campos, “lidar com uma complexidade indeterminada e também ser, ao mesmo tempo, um motor para a construção de novas complexidades e relações”.
O que acha de tudo isso?
[1] Mestre em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Docente na Faculdade de Direito da Universidade Católica de Angola.
[2] SHOSHANA ZUBOFF, The Age of Surveillance Capitalism: The Fight for a Human Future at the New Frontier of Power, Nova Iorque, 2019.
[3] WOLFGANG HOFFMANN-RIEM, Big Data – Regulative Herausforderungen (Materialien zur interdisziplinären Medienforschung), Baden-Baden, 2018
[4] RICARDO CAMPOS, Transformações do Direito Global, São Paulo, 2022.
[5] CAMPOS, Transformações….
[6] CAMPOS, Metamorfoses…
[7] YANIS VAROUFAKIS, Technofeudalism: What Killed Capitalism, Nova Iorque, 2024.
[8] CAMPOS, Metamorfoses…
[9] CAMPOS, Metamorfoses…
[10] THOMAS VESTING, Gentleman, Manager, Homo Digitalis, Der Wandel der Rechtssubjekitivitiit in der Moderne, Weilerwist, 2021.
[11] CAMPOS, Metamorfoses…