Por: Rosianne Pávla Pascoal
Ao falarmos de homoafectividade e a dignidade da pessoa humana, primeiramente temos de aclarar os conceitos de ambas realidades, ou seja, procurar definir homoafectividade e dignidade da pessoa humana.
Pessoa humana é uma identificação jurídica baseada em critérios biológicos e filosóficos, que diferencia os homens dos demais seres vivos, de máquinas e objectos inanimados, “humano” é o homo sapiens (“homem sábio”). Ao contrário dos seres inanimados, a pessoa humana, doravante homem/homens, devido ao elemento sapiens têm a capacidade de fazer escolhas, assim sendo, a pessoa humana toma decisões sobre os aspectos essenciais da sua vida e existência, incluindo a sua orientação afectiva, decidindo assim ser um ser heterossexual ou homoafectivo.
Como noção de homoafectividade[1] temos, a condição ou qualidade de um ser (humano ou não) que sente atracção física, estética e/ou emocional por outro ser do mesmo sexo ou gênero; ou também pode ser definida como a relação afectiva entre pessoas do mesmo sexo, fala-se essencialmente de um vínculo entre duas pessoas do mesmo sexo.
A homoafectividade é uma realidade social, sendo que as pessoas pertencentes a tal grupo, deparam-se com situações de tratamento não digno e não só no âmbito social mas também do ponto de vista legal. A dignidade é essencialmente um atributo da pessoa humana pelo simples facto de alguém “ser humano”, se tornando automaticamente merecedor de respeito e proteção, não importando sua origem, raça, sexo, idade, estado civil ou condição sócio-económica[2].
A dignidade da pessoa humana é um dos princípios basilares de um Estado Democrático e de Direito e essencial para a aplicação e delimitação de direitos fundamentais. Abrindo um breve parêntese, para dizer que o termo dignidade da pessoa humana teve relevância pela primeira vez com lmmanuel Kant, quando na sua obra -Fundamentação Metafísica dos Costumes- dizia que “as pessoas deviam ser tratadas com um fim e não como um meio, e não podemos nos esquecer de algumas notas essenciais do pensamento de Locke “o direito surge no espaço aberto pela liberdade, à liberdade se autolimita em nome da dignidade da pessoa humana”. O Estado se fundamenta na defesa deste valor fundamental, e só se legitima compromisso com este valor supremo: a dignidade da pessoa humana[3].
A dignidade da pessoa humana é um valor, tornando-se difícil atribuir-lhe uma definição ou conceito; embora difícil de conceituar a dignidade da pessoa humana tem um elemento essencial “dignidade inerente/intrínseca a qualquer ser humano, independentemente de qualquer coisa ou actividade”. Podemos tirar uma primeira noção de dignidade da pessoa humana do preâmbulo Declaração Universal dos Direitos do Homem aprovada em 1948, que enuncia uma “dignidade inerente a qualquer homem ou membro da família”.
No meu ponto de vista, o conceito mais completo de dignidade da pessoa humana pertence a Ingo Sarlet, pois este entende“(…) por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humano (…)[4].
A dignidade da pessoa humana possui uma identificação, como se de um direito natural se tratasse, um direito humano, um direito fundamental e um princípio de hermenêutica. É um valor que orienta todos os demais princípios, direitos, deveres e actos, tornando-se assim a pedra angular de todos os direitos naturais, do Homem, humanos, fundamentais. Por outro lado, em sua identificação interna, a dignidade da pessoa humana é um eixo de tolerabilidade, uma barra de proteção, uma linha divisória que delimita até que ponto algo, qualquer facto ou situação, é considerado tolerável por determinada coletividade, conforme suas referidas circunstâncias de tempo, lugar e desenvolvimento histórico-cultural.
Da dignidade da pessoa humana surgem os Direitos Humanos, que são importantes na medida em que viabilizam uma convivência harmónica, pacífica e produtiva entre os indivíduos na sociedade. Portanto, são essenciais à formação de um Estado Democrático, pois, o governo que nega tais direitos basilares dá causa a revoluções, guerras e revoltas. Sendo assim, o reconhecimento de tais direitos traz limites e obrigações à actuação estatal, sendo instrumentos indispensáveis à proteção da dignidade. A dignidade da pessoa humana se correlaciona diretamente ao conceito de mínimo existencial abordado por diversos autores, ou seja, a certos bens, oportunidades ou direitos cuja privação é considerada intolerável na medida em que se aviltaria a existência do ser.
A homossexualidade era um tipo de opção considerada intolerável nas sociedades antigas. Entretanto, actualmente vários povos passaram a rediscutir o repúdio a esta prática e hoje há a legalização de casamentos homoafectivos, graças aoprincípio da dignidade da pessoa humana, no discurso de tolerância às diferenças e primado da igualdade.
A nível da Constituição angolana encontramos o princípio da dignidade da pessoa humana no art. 1º da CRA “Angola, é uma República soberana e independente baseada na dignidade da pessoa humana(…)” e no art. 31º nº 2 da CRA “O Estado respeita e protege a pessoa e a dignidade da pessoa humana”. No corpo da CRA encontramos a consagração do princípio da dignidade da pessoa humana com a consagração de certos direitos constitucionais, estes direitos são irrenunciáveis, inalienáveis, imprescritíveis, universais, ligados directamente a pessoa e não as suas escolhas), dentre estes direitos alguns carecem de algum reforço e outros de uma reformulação de modos a se referir em verdade a toda a pessoa humana, podemos sumariamente desenvolver:
Direito a família, casamento e filiação (artigo 35º da CRA): nº 2: “Todos têm o direito de formar família nos termos da Constituição e da Lei”, no que concerne ao casamento, este apresenta-se com uma natureza jurídica de contrato, com características específicas, tendo sua noção no artigo 20° do Cód. da Família “o casamento é a união voluntária entre um homem e uma mulher, formalizada nos termos da lei, com objectivo de estabelecer-se a plena comunhão de vida”e origem no artigo 35º n°1, in fine da CRA ”a união voluntário entre um homem e uma mulher”. A diversidade de sexos é elemento um dos elementos de validade do casamento, ou seja, desde o ponto de vista Constitucional é vetado o casamento de pessoas do mesmo sexo.
Com a evolução dos tempos e evolução da sociedade houve surgimento e desenvolver da homoafectividade e o conceito de família deixa de se consubstanciar somente em pessoas de sexos diferentes. Logo, a formação de família sabendo que tal direito está intrinsecamente ligado a pessoa em si, deve deixar de olhar a opção sexual desta, há a necessidade de se adaptar os elementos a realidade, em que é as pessoas homoafectivas também gostariam de ter o direito a estabilizar e ou oficializar as suas relações. Assim sendo, do mesmo modo que heterossexuais têm o direito de casar, homoafectivos também devem o ter (tendo em conta a dignidade da pessoa humana), eis um aspecto que devia ser revisto na nossa CRA relativamente a dignidade da pessoa humana.
A questão da filiação, sabe-se que o instituto da adopção, está disponível para uma pessoa observando os requisitos do artigo 199º do Código da Família, para o adoptante; e esta adopção só pode ser feita por ambos os cônjuges de acordo com o artigo 205º alínea a e b do Cód. da Família (quando se refere a ambos os cônjuges, estamos a falar de duas pessoas que obedecem a essência dos sujeitos do casamento ou união de facto “homem e mulher”, excluindo-se já a chance de um casal homoafectivo na realidade angolana de adoptar. Assim para um casal homoafectivo, seriam obrigados a adoptar em nome individual (artigo 205º alínea c – artigo -207º nº 1do Cód. da Família).
Direito a liberdade de expressão e de consciência (artigo 40° e 41º da CRA): “todos têm o direito de se exprimir, divulgar e compartilhar livremente os seus pensamentos, ideias e opiniões, pela palavra, imagem ou qualquer outro meio, bem como o direito (…) sem impedimentos nem descriminações”, assim têm as pessoas o direito de exprimir as suas ideias e não só… exprimir e compartilhar a sua opção sexual.
Apesar da consagração de tal direito há ainda, o receio (por parte dos homoafectivos) da violação de outros direitos (a vida e a integridade física) e acabam não conseguindo exercer este direito. Têm ainda, a liberdade de consciência “a liberdade de consciência é inviolável”, n°2 sendo que ninguém pode ser privado dos seus direitos, perseguido, privado (…) por motivo de crença religiosa, convicção e entre outras realidades (tal como por opção sexual) mas muitas vezes, que pessoas são privadas do direito ao trabalho (artigo 76º da CRA) por força da opção sexual e sofrem discriminação e são oprimidos por outros cidadãos.
Em síntese conclusiva, gostaria de dizer que a dignidade da pessoa humana traz numa perspectiva não tão directa, outros princípios e um deles é o princípio da igualdade, sendo que somos todos iguais por sermos todos humanos e ninguém deve ser privilegiado ou discriminado de acordo com a sua raça, sexo, estatuto, religião, nem pela sua opção sexual (igualdade em sentido formal), porque é que encontramos os homoafectivos vetados de certos direitos constitucionais?
O Princípio da igualdade (artigo 23º da CRA), na sua perspectiva material afirma que deve-se tratar “igual por igual e desigual por desigual na medida da desigualdade”… Então, em que medida fica o homoafectivo na qualidade de desigual?! Nenhuma, é uma pessoa humana, tal como qualquer outro cidadão e se a diferença reside no facto de com quem essa pessoa decide se relacionar, não estamos a falar de um elemento essencial para a sua redução ou redução da sua dignidade, ao ponto de se colocar as pessoas homoafectivas em um patamar próprio.
Dito isto, penso eu que a vivência das pessoas homoafectivas e das heterossexuais não devem ser caracterizadas por discrepância de direitos, direitos estes, considerados direitos fundamentais de primeira geração como o direito à vida, à liberdade, à propriedade, à liberdade de expressão, à participação política e religiosa, à inviolabilidade de domicílio, à liberdade de reunião e entre outros. Assim, temos uma classe com certos direitos e estando outros vetados ou até certo ponto oprimidos do exercício de certos direitos.
Em suma, o princípio da dignidade da pessoa humana, traz consigo direitos de grande valoração dentro do nosso Estado e estes não podem ser oprimidos ou atropelados pelas escolhas pessoais (opção sexual do indivíduo) estamos a tratar de direitos essencialmente ligados a pessoas. Torna-se assim, necessário que se adeque as normas (a Constituição da República e demais legislação ordinária) a realidade, sendo que cresce cada vez mais a realidade homoafectiva e a mesma não deve ser ignorada e acabar privada de certos direitos de cabal importância para a sua vida.
[1] https://www.significados.com.br/homoafetividade/, acessado aos 7 de Junho de 2020. [2] https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direitos-humanos/a-dignidade-da-pessoa-humana-e-sua-definicao/, acessado aos 7 de Junho de 2020. [3] Roberto Lima Nogueira, Dignidade da pessoa humana: conceito fundamental da ciência jurídica, Revista de pós-graduação em Direito da UCPetrópolis, 2009, p. 21. [4] Roberto Lima Nogueira, Dignidade da pessoa humana: conceito fundamental da ciência jurídica, Revista de pós-graduação em Direito da UCPetrópolis, 2009, p. 31.