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Notas sobre o processo de aquisição de terrenos e concessão de direitos fundiários à luz do ordenamento jurídico angolano

Désio Melo VULA, Jurista.

INTRODUÇÃO

A Constituição da República de Angola (CRA) de 2010 é a lei superior do Estado Angolano e estabelece os princípios fundamentais da organização fundiária do país, sendo estes depois desenvolvidos na legislação ordinária.

DA LEGISLAÇÃO ORDINÁRIA FUNDAMENTAL

Na legislação ordinária angolana são centrais por um lado a Lei de Terras (Lei 9/04, em diante LT) e a sua regulamentação pelo Regulamento Geral de Concessão de Terrenos (Decreto 58/07, em diante Regulamento), e por outro o Código Civil, em especial o seu Livro III. A distinção entre a aplicabilidade destas leis é central para entender o ordenamento jurídico fundiário angolano.

ENQUADRAMENTO

A LT e o Regulamento são aplicáveis às concessões de direitos fundiários concedidos pelo Estado sobre terra que lhe pertence. O Código Civil aplica-se a terras que sejam propriedade de privados. No entanto, e apesar desta separação, os dois regimes entrecruzam-se em alguns pontos. Por exemplo a LT e o Regulamento estabelecem uma série de restrições sobre a terra que tenha sido definitivamente alienada a privados (por exemplo no art. 48º nº 3 da LT). Por outro lado, o regime do Código Civil é subsidiariamente aplicável aos direitos fundiários estabelecidos sobre imóveis do Estado nos termos da LT e do Regulamento.

Sendo o Código Civil, a LT e o seu Regulamento centrais na definição de direitos sobre a terra, não são os únicos diplomas legislativos relevantes nesta matéria.

DA CONCESSÃO DE DIREITOS FUNDIÁRIOS

De acordo com o princípio da propriedade originária do Estado este é por defeito o proprietário da terra, esta análise foca-se na concessão de direitos fundiários sobre imóveis do Estado, deixando fora da análise a constituição de direitos sobre imóveis quando estes já saíram da esfera jurídica do Estado.

A matéria da concessão de direitos fundiários encontra-se regulada no capítulo III, secção I da LT, no seu artigo 41°. e segas.

Diz o nº 1 do artigo citado que a constituição de direitos fundiários sobre terrenos urbanizáveis depende da observância do disposto nos planos urbanísticos ou em instrumentos equivalentes e da execução das correspondentes obras de urbanização.

DOS MODOS DE CONSTITUIÇÃO DE DIREITOS FUNDIÁRIOS

Em Angola a constituição de direitos fundiários opera-se por:

  1. Contrato de compra e venda;
  2. Aquisição forçada do domínio direto por parte da enfiteuta, operando-se essa transmissão coativa;
  3.  Através do acordo das partes ou de venda judicial mediante o exercício do direito potestativo do foreiro integrado por decisão judicial; por contrato de aforamento para a constituição do domínio útil civil;
  4. Por contrato especial de concessão para a constituição do direito de superfície e;
  5.  Mediante contrato especial de arrendamento para a concessão do direito de ocupação precária.
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DO PROCESSO DE CONCESSÃO DE DIREITOS FUNDIÁRIOS

O processo de concessão de direitos fundiários sobre imóveis é regulado pelos artigos 58° e segs. da LT que remete os seus termos para o artigo 134º e segs. do Regulamento.

De acordo com o artigo, 134º e segs. do Regulamento, o processo inicia-se com o requerimento do interessado dirigido à autoridade concedente.

Além da identificação do requerente, o requerimento deve conter o seguinte:

a) menção da localização, área, confrontações, número de descrição ou declaração de omissão no registo predial, bem como de quaisquer circunstâncias que interessem à identificação do terreno;

b) especificação da finalidade visada pela concessão;

c) indicação, consoante os casos, do preço oferecido pelo direito de propriedade, do preço oferecido pelo domínio útil civil, da prestação única ou da prestação anual oferecida pelo direito de superfície ou da renda anual oferecida por metro quadrado de terreno, nunca inferiores aos das tabelas em vigor;

d) menção das concessões de que seja titular, em nome próprio ou no do cônjuge, de filhos incapazes, de sociedades em nome coletivo ou de sociedades por quotas em que possua mais de metade do capilar social.

DA PUBLICIDADE DO PEDIDO DE CONCESSÃO

O requerimento deve ser afixado na sede da autoridade concedente e nas sedes das respetivas administrações municipais e comunais, e no jornal de maior circulação, em obediência ao estabelecido no artigo 112° do Regulamento.

DA COMPETÊNCIA PARA AUTORIZAR A CONCESSÃO E O RECONHECIMENTO

O artigo 134° do Regulamento determina que cabe ao Instituto Geográfico e Cadastral de Angola a instrução dos pedidos de concessão, mas existem dúvidas sobre a quem cabe o poder de autorizar as concessões requeridas.

A LT dividiu a competências para autorizar a concessão de direitos fundiários entre o Conselho de Ministros, o ‘responsável pelo cadastro’, os Governos Provinciais, e o Ministro do Urbanismo e do Ambiente, as administrações municipais e comunais dependendo da área da concessão e de se tratar de um terreno urbano ou rural.

DAS FORMAS DE PROCESSO DE CONCESSÃO

De acordo com o artigo 135° do Regulamento, o processo de concessão de terrenos pode ser comum ou especial. O processo comum é aplicável a todos os casos a que não corresponda processo especial. Já o processo especial aplica-se às concessões gratuitas, à concessão do direito de ocupação precária e aos demais casos expressamente previstos no regulamento.

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FASES DO PROCESSO COMUM DE CONCESSÃO

O processo comum é integrado pelas seguintes fases:

a) apresentação do requerimento pelo interessado;

b) informações e pareceres dos serviços e demais entidades que devam ser consultados sobre o pedido;

c) demarcação provisória do terreno, seguida ou não de hasta pública;

d) apreciação do requerimento e aprovação ou indeferimento;

e) demarcação definitiva;

f) celebração do contrato de concessão;

g) outorga do título de concessão;

h) inscrição do direito, a favor do concessionário, no registo predial

DA INSTRUÇÃO DO PROCESSO DE CONCESSÃO

O processo de concessão inicia com o requerimento do interessado.

Com o requerimento de concessão, serão juntos os seguintes documentos nos termos do artigo 138° do Regulamento:

a) fotocópia do bilhete de identidade e assento de nascimento do requerente, se este for cidadão nacional, ou fotocópia autenticada do passaporte e do cartão de residente, tratando-se, de cidadão estrangeiro;

b) Certidão do Registo Comercial e do instrumento constitutivo, se o requerente for uma pessoa coletiva, e fotocópia dos documentos de identificação dos sócios ou acionistas maioritários, gerentes ou administradores;

c) Certificado de Registo de Investimento Privado (CRIP), emitido pela Agência Nacional do Investimento Privado na sequência da aprovação, ao abrigo da legislação aplicável, de um projeto de investimento privado;

d) plano de aproveitamento do terreno, com a indicação da localização do mesmo;

e) declaração de sujeição às leis, autoridades e tribunais angolanos e de renúncia, nas questões com o Estado, a qualquer foro e processo judiciário estrangeiro, quando o requerente não tenha nacionalidade angolana;

f) certidão de teor da descrição do terreno e das inscrições em vigor ou comprovativa da sua omissão no registo, passadas com antecedência não superior a três meses;

2. Se o cidadão nacional não possuir ou não exibir bilhete de identidade ou assento de nascimento, a identificação faz-se por meio de:

a) qualquer outro documento com fotografia atualizada e impressão digital ou assinatura que forneça os dados relativos ao nome completo, sexo, filiação, data e local de nascimento, morada completa com indicação do lugar e, quando existam, do bairro, rua, número e andar do prédio;

b) do testemunho de dois cidadãos nacionais de reconhecida idoneidade, que possuam bilhete de identidade e que atestem; sob compromisso de honra, a identidade do cidadão em causa;

3. Tratando-se de empreendimentos de reconhecido interesse para o desenvolvimento do País, o requerimento será ainda instruído com a indicação, em peças escritas e desenhadas, à escala bem assinalada, do plano de obras e fases de realização e, bem assim, do valor do investimento mínimo a efetuar.

DO TÍTULO DE CONCESSÃO

Logo após o cumprimento dos procedimentos administrativos a que o regulamento estabelece para a aquisição do direito de superfície, a autoridade competente emite um título de concessão, segundo o modelo legalmente fixado, no qual se identificam a natureza do terreno concedido, o tipo de direito fundiário transmitido ou constituído, a data da transmissão ou da constituição, o prazo de do contrato de concessão, a identificação da autoridade concedente se sendo caso disso, o preço e a sisa que hajam sido pagos.

DAS DESPESAS E IMPOSTO DO SELO

No que concerne às despesas com a aquisição de direito de superfície mediante contrato de concessão, o artigo 156.º estabelece que oprocesso de concessão e os seus incidentes estão sujeitos ao pagamento de despesas, segundo a tabela aprovada por decreto executivo conjunto dos Ministérios das Finanças e do Urbanismo e Ambiente.

Para além dos processos de concessão, os seus incidentes também estão sujeitos ao pagamento do imposto do selo, salvo se forem isentos por lei. Neste sentido, estão nomeadamente, sujeitos a imposto do selo:

a) os requerimentos e as reclamações de quaisquer interessados que não sejam entidades oficiais;

b) os documentos que instruam os requerimentos e as reclamações referidos na alínea anterior;

c) os contratos e os títulos de concessão;

d) os registos na Conservatória do Registo Predial.

DA OBRIGAÇÃO DE APROVEITAMENTO ÚTIL E EFECTIVO DO TERRENO

O artigo126.º do Regulamento define o que consiste em aproveitamento útil e efetivo na execução do plano de exploração ou de construção constante do contrato de concessão ou, não o havendo, na utilização de todo o terreno concedido para os fins da concessão.

Vale referir que para os efeitos do disposto no presente diploma, só é considerado relevante o aproveitamento que tiver sido realizado pelo concessionário.

DOS DEVERES DO ADQUIRENTE

para efeitos do artigo 56° da LT constituem deveres do adquirente os seguintes:

  1. Pagar tempestivamente os foros e demais prestações a que, conforme o caso, esteja obrigado;
  2. Efetuar o aproveitamento útil e efetivo do terreno concedido de acordo comos índices fixados;
  3. Não aplicar o terreno a fim diverso daquele a que se destina;
  4. Não violar as regras do ordenamento do território e dos planos urbanísticos;
  5. Utilizar o terreno de modo a salvaguardar a capacidade de regeneração do mesmo e dos recursos naturais nele existentes;
  6. Respeitar as normas de proteção ambiente;
  7. Não exceder os limites impostos pelo artigo 18°;
  8. Respeitar os direitos fundiários das comunidades rurais, designadamente as servidões de passagem que recaiam sobre o seu terreno;
  9. Prestar às autoridades competentes todas as informações por estas solicitadas sobre o aproveitamento útil e efetivo do terreno;
  10. Observar o disposto na LT e nos seus regulamentos.

DA DURAÇÃO DAS CONCESSÕES

De acordo com o artigo 55° da LT, os direitos fundiários são transmitidos ou constituídos:

  1. Perpetuamente, no caso do direito de propriedade, sem prejuízo do disposto no artigo 48° da LT, quanto à resolução do contrato de compra e venda;
  2. Perpetuamente, no caso de domínio útil consuetudinário, sem prejuízo da sua extinção pelo não uso e pela livre desocupação nos termos das normas consuetudinárias;
  3. Perpetuamente, no caso do domínio útil civil, sem prejuízo do direito de remissão;
  4. Por prazo não superior a 60 anos, no caso de direitos de superfície;
  5. Por prazo não superior a um ano, no caso do direito de ocupação precária;

Nos casos da al. d) e e), o contrato de concessão renova-se por períodos sucessivos se nenhuma das partes o tiver denunciado no tempo e pela forma convencionados ou se não ocorrer nenhuma causa de extinção prevista na lei.

DA EXTINÇÃO DAS CONCESSÕES

De acordo com o artigo 64° da LT, as causas de extinção das concessões são as seguintes:

  1. O decurso do prazo, sendo constituídos por certo tempo, se o contrato de concessão não for renovado;
  2. Pelo seu não exercício ou pela inobservância dos índices de aproveitamento útil e efetivo durante três anos consecutivos ou seis anos interpolados, qualquer que seja o motivo;
  3. Pela aplicação do terreno a fim diverso daquele a que ele se destina;
  4. Pelo exercício do direito fundiário em contravenção do disposto no artigo 18° da LT;
  5. Pela expropriação por utilidade pública;
  6. Pelo desaparecimento ou inutilização do terreno.

DA TRANSMISSÃO POR ACTO ENTRE VIVOS

O artigo 177°. do Regulamento Geral de Concessão de Terrenos estabelece os modos de transmissão dos direitos fundiários por ato entre vivos, e são nomeadamente os seguintes:

1. A transmissão por ato entre vivos, quer a título gratuito, quer a título oneroso, dos direitos fundiários concedidos deve ser requerida pelo transmitente e pelo transmissário.

2. Salvo casos justificados, a transmissão não será autorizada:

a) quando os prazos de aproveitamento do terreno não tenham sido respeitados;

b) quando a execução das obras senão processe de acordo com o plano de trabalhos aprovado;

c) quando o aproveitamento do terreno se não desenvolva ou não se concretize nos termos e pela forma estabelecidos no respetivo contrato.

3. É proibida a transmissão de situações decorrentes da concessão quando houver indícios de que foi pedida para fins especulativos.

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DO REGISTO PREDIAL

 Uma vez obtido o titulo de concessão, o artigo 147.º do Regulamento manda a autoridade concedente promover oficiosamente o registo do facto constitutivo do direito fundiário concedido na Conservatória do Registo Predial da situação do terreno, a expensas do titular do direito em causa.

Diz o número 2 do artigo citado, que o titular do direito fundiário concedido tem igualmente legitimidade para requerer o registo predial.

CONCLUSÕES

Em Angola a terra pertence ao Estado. O Estado pode conceder através dos meios legais direitos sobre terrenos do seu domínio privado.

O processo de aquisição de terrenos mediante concessão inicia-se a requerimento do interessado. Uma vez obtido o titulo de concessão, o concessionário deve prosseguir o fim pelo qual requereu o direito fundiário, sob pena de ver extinto o seu direito, e revogado o título de concessão.

A lei admite igualmente a obrigação de inscrever o direito constituído no registo predial.

O requerente deve obrigatoriamente fazer o aproveitamento útil do terreno nos termos estabelecidos pela lei. Se não o fizer dentro de três ou de seis anos interpolados, a entidade concessionária tem a faculdade de retirar o titulo concedido ao particular.

Quanto às despesas com o imposto de selo, a obrigação recai sobre o requerente do direito fundiário.

Finalmente, os direitos constituídos mediante concessão só podem ser transmitidos pelo seu titular, sob pena de nulidade, mediante autorização prévia da autoridade concedente, e após o decurso de um prazo de 5 anos de aproveitamento útil e efectivo do terreno, contados desde a data da sua concessão ou data da sua última transmissão.

Autor:

Désio Bernardo de Melo Vula, Advogado

Contacto: 923 522 484 ou desiomelo07@gmail.com

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Lei de Terras (Lei n.º 9/2004, de 9 de novembro

Constituição da República

Código de Registo Predial

Decreto-Lei nº 16-A/95 de 15 de dezembro.

Constituição da República de Angola de 2010;

▪ Código Civil Angolano;

▪ Constituição da República de Angola.

▪ Lei nº 03/04 de 25 de junho – Lei do Ordenamento do Território e Urbanismo.

▪ Decreto nº 02/06 de 23 de janeiro – Aprova o Regulamento Geral dos Planos Territoriais Urbanísticos e Rurais.          

▪ Decreto nº 58/07, de 13 de julho – Regulamento Geral de Concessão de Terrenos.

▪ Decreto nº 13/07, de 26 de fevereiro – Regulamento Geral das Edificações Urbanas.

 ▪ Decreto Presidencial nº 216/11, de 08 de agosto fixa as Bases Sobre a Política Nacional para Concessão de Direitos Sobre a Terra.

▪ Decreto Presidencial nº 85/15, de 5 de maio – Aprova o Estatuto Orgânico do Instituto Planeamento e Gestão Urbana da Província de Luanda.

▪ Decreto Presidencial nº 202/19, de 25 de junho – Aprova o Regulamento da Lei da Administração Local do Estado.

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