A TPA A NOVA DEUSA DA JUSTIÇA PÚBLICA EM ANGOLA.
Diogo Agostinho José, Jurista e Docente.
Resumo
O presente artigo tem como escopo a “grande” preocupação instalada em torno do respeito pelos princípios fundantes do Estado de Direito nomeadamente: os direitos, liberdades e garantias fundamentais, enquanto conquistas universais que devem ser respeitados por todos os indivíduos, independentemente da sua posição social ou profissional. A esse respeito constatou-se com grande preocupação o ato de interrogatório realizado pela imprensa pública contra o Major Pedro Lussaty, constituído arguido pela Procuradoria-Geral da República de Angola, na sequência da acusação dos desvios de dinheiro ocorrido na Casa Militar da Presidência da República de Angola.
No seguimento de tal ato a Televisão Pública de Angola (TPA), apresentou no seu programa denominado “O Banquete” o desenvolvimento do escândalo financeiro em nome do interesse público, ou seja, do jornalismo investigativo e do direito a informar os seus telespectadores (exercendo interrogatório em forma de instrução preparatória sobre o arguido), confrontado outros direitos constitucionalmente plasmado na magna carta que será aqui discutido tal colisão de direitos.
Palavras-chave: liberdade de imprensa, direitos fundamentais.
Summary
The scope of this article is the “great” concern installed around respect for the founding principles of the Rule of law, namely: fundamental rights, freedoms and guarantees, as universal achievements that must be respected by all individuals, regardless of their social or professional status. In this regard, it was noted with great concern the interrogation carried out by the public press against Major Pedro Lussaty, constituted as a defendant by the Attorney General of the Republic of Angola, following the embezzlement of money that occurred in the Military House of the Presidency of the Republic of Angola. Following this act, the Public Television of Angola (TPA), presented in its program called “O Banquete” the development of the financial scandal in the name of the public interest, that is, investigative journalism and the right to inform its viewers (exercising interrogation in the form of preparatory instruction on the defendant), confronted with other rights constitutionally set out in the magna carta that will be discussed here such collision of rights.
Keywords: press freedom, fundamental rights.
Introdução
O estudo ora dado à estampa visou destrinçar distintos problemas[1] engrossado em torno da problemática ou fronteira que existe entre o direito a informar/direito a não proceder autoincriminação e um processo justo, ou seja, (interesse público) e o (interesse privado), que coloca em confrontação importantes direitos, liberdades e garantias fundamentais constitucionalmente protegidos pela Constituição da República de Angola (CRA) e pela ciência jurídica (concretamente pelo Direito).
A abordagem tem como tema “A TPA a nova deusa da justiça pública em Angola”, em função da colisão de direitos que se constatou após a apresentação do sugestivo programa “O Banquete” que detalhou na integra a “Operação Caranguejo” que brindou a todos com suposto inovador jornalismo de investigação contra “alvos pré-determinados” na luta contra o combate a corrupção que está a ser levado a cabo pelo Executivo angolano e apoiado pelos órgãos judiciais particularmente pela Procuradoria-Geral da República (PGR). Neste particular, pretende-se saber, se o jornalismo investigativo, pode ou não realizar uma entrevista que, se confunda com o interrogatório, contra o arguido e até que ponto viola o princípio da presunção da inocência?
É sobre isso, e outras questões que será dedicado estudo que aqui se expõe, apesar de sua complexidade dada a elevada zona cinzenta que as vezes se apresenta tal problemática da ponderação de direitos?
Não se vai procurar exercer neste estudo a ponderação de direitos apenas procurar-se-á clarificar alguns princípios fundamentais do Estado de Direito[2] e a íntima necessidade dos mais distintos membros da sociedade a respeitarem.
O programa denominado “O Banquete” da Televisão Pública de Angola, exibiu no dia 01/06/2021 (segunda-feira) a denominada “Operação Caranguejo” que trouxe a liça o combate a corrupção uma das maiores bandeiras de campanha do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e de governação do Presidente da República de Angola, Chefe de Estado e Titular do Poder Executivo conforme decorre do texto constitucional (art.º 108.º CRA), e rubricado pelo poder judicial (Ministério Público) por “espanto”[3].
Tal operação suscita ou suscitou da parte da sociedade leituras distintas e que séria quase condenável a academia passar por cima desta realidade, invertendo a lógica defendida no pensamento clássico que “uma sociedade que não é esclarecida por filósofos, é enganada por charlatões”[4] (…). Para o efeito, pretende-se refletir através da perspetiva jus constitucional, com incidência ao Direito Probatório e o Direito da Informação, como sendo o principal embasamento desta reflexão.
Por economia espacial não será apresentado alguns conceitos básicos de Direito Probatório e Direito[5] da Informação, num primeiro momento, mas que estará implicitamente no desenvolvimento doutrinal, legal e jurisprudencial desta “digesta” ou exercício académico.
Pretende-se responder o seguinte: Devem os órgãos de comunicação social (entrevistar o arguido) e produzir provas num caso que se encontra em segredo de justiça?
É claramente sobre está situação factual que merecerá a reflexão de “ius” versada no presente estudo.
O julgamento público do(s) arguido(s) tomou novos contornos desde o momento que a Televisão Pública de Angola (TPA), assumiu um jornalismo talvez movido pelo espetáculo, distinto das regras jornalísticas ao colocar em confrontação a liberdade de expressão e informação (art.º 40.º CRA) e o direito de informar[6] (art.º 44.º CRA)[7] e os demais direitos: direito à defesa, visto que ninguém pode ser submetido a julgamento senão nos termos da lei (n.º 1, do art.º 67.º CRA), a não fazer confissões ou declarações contra si (al. g) 63.º CRA) o justo julgamento (art.º 72.º CRA) e claramente o direito à presunção da inocência[8] (art.º 67.º CRA), protegidos no ordenamento angolano[9].
Mas, a estação pública ao servir aos angolanos e ao mundo, um delicioso jantar denominado “O Banquete”, que reflete a podridão que o País se encontra submetida em todos os sentidos e domínios, colocou em confrontação fundamentos do Estado de Direito (o direito à liberdade de informar e a ser informado… e o direito à presunção da inocência e os outros anteriormente elencados), ou seja, numa só frase, colidiram direitos fundamentais (direitos e garantias fundamentais do Estado de Direito), que exige de todos uma atuação proporcional[10] como uma das formas de proibição do arbítrio[11].
No entendimento de Maria Luiza Duarte, a proporcionalidade corresponde a uma exigência de atuação dos poderes públicos que seja necessária e adequada à realização do objetivo selecionado ou à tutela de um interesse relevante[12]. A pergunta que não pretende calar prende-se no seguinte, será que o interesse ao combate a corrupção deve sacrificar a todos os títulos o princípio da presunção da inocência e da não autoincriminação?
Existe uma grande diferença entre o jornalismo deontológico e o serviçal praticado por um órgão que vive das contribuições dos contribuintes (Cfr. OGE[13]), não se pode transformar todos os angolanos em Pedro Lussaty, por via da ofensa dos mais elementares princípios do Estado de Direito (princípios da constitucionalidade, da juridicidade, e dos direitos fundamentais[14]), princípios consolidados por via das grandes revoluções seculares[15], como demonstração de inversão do sentido contrário ao verdadeiro regresso do Direito Penal do inimigo[16], que ofende os mais basilares normativos constitucional (princípio da universalidade constante do (n.º 1, do art.º 22.º CRA), princípio da efetividade aplicável a todas entidades públicas e privadas, (art.º 28.º CRA)[17], do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efetiva[18], (art.º 29.º CRA)[19], e da (garantias do processo criminal) como decorre do seu n.º 1, do respetivo articulado determina que ninguém pode ser detido, preso ou submetido a julgamento senão nos termos da lei, sendo garantido a todos os arguidos ou presos o direito de defesa, de recurso e de patrocínio judiciário. Nos termos do n.º 2. do artigo referido determina que se presume inocente todo o cidadão até ao trânsito em julgado da sentença de condenação.
Artigo completo no documento abaixo:
[1] E. Kafft KOSTA, Sistema de governo na Lusofonia: Zonas e relações de poder, reimp. AAFDL, 2019, p. 11.
[2] Decorre que o Estado de Direito assenta na dignidade da pessoa humana que os diferentes poderes públicos têm de tratar todas as pessoas com igual consideração e respeito, que não as podem afetar desvantajosamente de forma excessiva ou desrazoável, que tem de respeitar a sua jurisdição as condições mínimas expectativas em condições mínimas de acesso aos bens jus fundamentalmente protegidos às questões essenciais da vida em conformidade devem ser deliberadas com suficiente densidade normativa pelos representantes do povo em condições de pluralismo, publicidade e transparência, Jorge Reis NOVAIS, Princípios estruturantes de Estado de Direito, Almedina, reimp., 2019, p. 10.
[3] Tendo em atenção a institucionalização ou fundação do Estado Democrático de Direito, o poder judicial sempre esteve presente. Esse beneplácito do Poder Judicial, particularmente a PGR, é claramente a falta de autonomia deste órgão, em relação ao Executivo não pelo modelo de nomeação do Procurador-Geral da República, mas pela sua atuação. Nesta linha cabe aqui referir que a Lei de Revisão Constitucional (Lei n.º 12/91, de 6 de Maio): tinha como principais objetivos consagrar o pluralismo e a despartidarização das Forças Armadas, dar dignidade constitucional às transformações económicas, a abertura democrática, proteção dos direitos, liberdades e garantias e deveres fundamentais dos cidadãos… Raul Carlos Vasques ARAÚJO, O Presidente da República no sistema político de Angola 1975-2010, 2.ª ed., Almedina, 2017, p. 284.
[4] Cf., Diogo FreitasAMARAL, in História das ideias políticas, Vol. I, 10.ª reimp., Almedina, 2010.
[5] É sabido que há vários institutos onde conflituam as finalidades do processo penal – de descoberta da verdade, por um lado, e de não desproteção excessiva dos direitos fundamentais do arguido, por outro lado –, e é também seguro que a teleologia do processo penal, num Estado de Direito, supõe a constante procura da solução que mais cabalmente contribua para a concordância prática. Cláudia Cruz SANTOS, A Verdade do Magistrado e a Verdade do Escritor: Alguma se Escreve no Singular? CEJ, 2019, p. 12, op. cit. http://www.cej.mj.pt/.
[6] Uma coisa é relatar factos e a outra, é o jornalista interrogar a pessoa envolvida e as suas declarações acabam por ser transportadas para o processo, a partir do momento que a pessoa está entregue as autoridades policiais este não deve prestar declarações a não ser em sede do processo. E o Jornalista, nesta fase tem de se limitar relatar os factos, e não fazer entrevista a pessoa e não tem de interrogar, porque está função, é processual, Luzia Bebiana SEBASTIÃO, in mesa-redonda, Segredo de Justiça e Liberdade de Imprensa, AJA, YouTube, consultado aos 03-06-2021.
[7] “A liberdade de imprensa, enquadrado no grupo dos direitos, liberdades e garantias fundamentais, é de aplicação direta, e as suas funções: função de defesa, liberdade…, são direitos que requerem da entidade públicas um nada fazer. A liberdade de imprensa infelizmente, o Estado tem a regulada, quando estaria obrigado a um nada fazer, mas existe uma Lei de Imprensa, que não é clara…”, reconhece António Paulo, que a Constituição não densificou este problema da liberdade de imprensa. Nos termos (art.º 40.º CRA, n.º 3), A liberdade de expressão e a liberdade de informação têm como limites os direitos de todos ao bom nome, à honra e à reputação, à imagem e à reserva da intimidade da vida privada e familiar, a proteção da infância e da juventude, o segredo de Estado, o segredo de justiça …, , António RodriguesPAULO, in Mesa-redonda, Segredo de Justiça e Liberdade de Imprensa, AJA, YouTube, consultado aos 03-06-2021.
[8] Quando o juiz não logra penetrar, pelo emprego dos processos ordinários de interpretação, o espírito da lei e a intenção do legislador, a interpretação mais favorável ao réu que deve prevalecer, CaeiroMATTA, Direito criminal português, Coimbra, Vol. II, p.p. 33 – 37.
[9] A presunção da inocência enunciado primeiramente, a 10 de Dezembro de 1948, na D.U.D.H., tendo sido analogamente acolhido no P. I. D. C. P. em 1976 e na C. E. D. H. de 1950, o principio da presunção de inocência foi igualmente elevado à categoria de principio fundamental na C.R.P. de 1976, vigorando até aos dias de hoje, como um dos mais relevantes institutos de defesa da posição do arguido, em processo penal. Diz o art.º. 32º nº 2 da C.R.P. que “todo o arguido se presume inocente até ao transito em julgado da decisão de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa”. Pedro Filipe Valente de OLIVEIRA, O princípio de presunção da inocência em sede do processo de mediação penal, Tese, Universidade Católica do Porto, 2012, p.7, repositorio.ucp.pt.
[10] O princípio da proibição do excesso, é apresentado numa terminologia tão oscilante, na versão mais vulgarizada, o princípio da proporcionalidade. Seja da parte da jurisprudência constitucional como da grande maioria dos Autores, a designação mais utilizada quando se trata de encontrar uma denominação abrangente da generalidade dos controlos e parâmetros constitucionais relacionados com a adequação substancial de uma medida restritiva da liberdade, Jorge Reis NOVAIS, Princípios Estruturantes de Estado de Direito, Almedina, 2019, p. 95.
[11] Mais o desenvolvimento, Jorge Reis NOVAIS, Princípios Estruturantes de Estado de Direito, Almedina, 2019, p.p. 79 – 92. O acesso ao Direito e à Justiça implica, por natureza, que a justiça seja célebre e não seja cara. No Acórdão n.º 340/2013, sobre a proibição de autoincriminação ou “nemotenetur se ipsum accusare”, Ana Maria Guerra MARTINS, Estudos de Direito Constitucional, AAFDL, 2019, p.p. 116 e 139.
[12] Maria Luiza DUARTE, União Europeia e direitos fundamentais, AAFDL, 2013, p. 295.
[14] Vide, Raul Carlos VasquesARAÚJO, in Introdução ao direito constitucional angolano, CEDP/UAN, 2018, p.104.
[15] Revolução americana e a francesa.
[16] “O estado de natureza em que o inimigo se encontra é um estado de ausência de normas, é dizer, de liberdade excessiva, tanto como de luta excessiva. Quem ganha a guerra determina o que é a norma e quem perde tem que submeter-se a essa determinação”, PedroCAEIRO, III Congresso de Investigação Criminal, Investigação Criminal – novas perspetivas e desafios, 2015, p. 128, www.fd.uc.pt, consultado aos 03-06-2021.
[17] Os preceitos constitucionais respeitantes ao direitos, liberdades e garantias fundamentais são diretamente aplicáveis e vinculam todas as entidades públicas e privadas (Art. 28.º da CRA)
[18] Todo o sistema de vias processuais de direito, se coerente com a exigência primordial da tutela judicial efetiva, deve garantir ao sujeito jurídico o acesso à chamada proteção cautelar ou provisória. Maria Luiza DUARTE, Direito do contencioso da União Europeia, AAFDL, 2017, p. 357.
[19] Aponta a doutrina que a tutela não contenciosa abrange os mecanismos que determinam a possibilidade de defender os direitos fundamentais sem ser necessário recorrer aos tribunais. A sua defesa muitas vezes passa pela consciencialização do poder público para o respetivo cumprimento, com a ativação de instrumentos que interferem junto dos próprios titulares do poder que ofende esses direitos., Jorge BarcelarGOUVEIA, Direito constitucional de Angola, IDILP, 2014, p. 337.