Por: Imaculada Melo*
Algumas pessoas a quem enviei o meu comentário sobre a proposta de alteração da Lei Orgânica e Funcionamento do Tribunal Constitucional e Lei do Processo Constitucional emitiram opinião crítica sobre a extemporaneidade do documento, pois as referidas leis estavam no fim do processo de aprovação, embora, para meu consolo, também houve quem sugerisse que o trabalho valeria a pena para debate académico.
Acontece que com a súbita proposta de revisão constitucional apresentada, por iniciativa do Presidente da República, nos termos do disposto no artigo 233.º da Constituição da República de Angola (CRA), tendo em conta os fundamentos avançados e alguns pontos propostos para a alteração, não deixo de considerar actual o comentário que efectuei sobre a proposta de alteração das leis atinentes ao Tribunal Constitucional, entretanto já aprovada pela Assembleia Nacional.
Isto porque pareceu-me muito reducionista naquele processo que o leitmotiv apresentado gravitasse em torno do desconforto institucional entre o Tribunal Constitucional e o Tribunal Supremo e não na necessidade de se promover o desenvolvimento constitucional consentâneo com o princípio do Estado democrático de direito e, mais, trouxesse à discussão a defesa de questões que, quanto a mim, consubstanciam baixa de garantias constitucionais em sede dos direitos fundamentais. Embora tratar-se de um domínio com muitas dificuldades ainda existentes no seio da comunidade jurídica angolana, todavia é mister reconhecer que o Tribunal Constitucional esforçou-se algumas vezes em encontrar um alinhamento mínimo com a CRA em sede dos direitos, liberdades e garantias, por forma a assegurar o núcleo essencial dos direitos fundamentais consagrados e subsumíveis ao Estado democrático de direito, factor que resulta da função da Constituição de estruturação do ordenamento jurídico. (Veja-se os Acórdãos 121 e 122 de 2010, 148/2011, 314/13, 393/ 2016, 467/ 2017 e 658/2020)
Por isso também não me passaram despercebidas as soluções que vinham propostas nas novas leis do Tribunal Constitucional para certos institutos e situações (quanto a mim de cunho demasiado subjectivo e pernicioso), bem assim como as omissões sobre questões chave inseridas no âmbito da matéria jurídico-constitucional, por conseguinte, com reflexo na organização e funcionamento do Tribunal Constitucional afectando a pretensa eficácia referencial na modelação do sistema de administração da justiça.
Porque a actuação do Tribunal Constitucional contém uma questão metodológica que prossegue hodiernamente com as exigências da realização da justiça material na aplicação do direito ao caso concreto, pois tem em conta a extensão do princípio do Estado de Direito com toda a sofisticação que comporta enquanto princípio estruturante, contexto em que o Tribunal Constitucional é concomitantemente fiscal e guardião da CRA. Eis a questão que liga os dois temas, a revisão constitucional, ora proposta, e as novas Leis do Tribunal Constitucional, recentemente aprovadas, desde logo porque a CRA enquanto lei suprema faz parte do ordenamento jurídico ocupando uma posição hierárquico-normativa superior em relação às outras normas, mas não apenas.
Desta posição deriva que é uma norma única e primária directamente emanada do poder constituinte, do qual decorre tanto a sua legitimidade e validade como o seu carácter imperativo em relação a petrificação de certas matérias que constituem o núcleo identitário da Constituição, ou seja, a sua reserva material. Daí que o ponto de intercepção entre os dois temas tenha que ver com a dimensão cultural do Estado democrático de direito consagrado em Angola; ambos os temas têm a discussão centrada nas bases do poder constituinte originário que inclui os compromissos assumidos com relação à necessidade de extinção das causas profundas do conflito angolano, a inclusão da sociedade plural e despartidarização do Estado, base jusfundamental que conforma a Lei Constitucional de 1992 inserida no processo de transformação constitucional. Por isso, a revisão constitucional tal como as leis atinentes ao Tribunal Constitucional não deixam de ter como centralidade a avaliação dos efeitos constitucionais de ambas, na sociedade angolana, desde a sua vigência e projectar-se uma linha de correcção progressiva dentro daquilo que é mais correcto considerar como proposta de organização do estado e direcção do poder político consentâneo com um processo de transformação constitucional evolutivo e coerente com o tipo de compromissos assumidos e natureza do Estado consagrado. Significa que é preciso cuidar da exequibilidade dos princípios fundamentais da República de Angola insertos nos artigos 1º e 2.º da CRA, com a consequente institucionalização do Estado e autonomia do jurídico. Estes são os pressupostos que mais especificamente cuidam da construção do Estado como bem comum e da neutralidade da função jurisdicional, garantias de uma progressão constitucional e do nível de estruturação do Estado de acordo com critérios de juridicidade e pluralidade.
Ora, é neste binómio que a questão se coloca: político-jurídico e jurídico-político, uma vez que em Estado de direito o exercício do poder político é limitado pelo direito e isto repercute-se na norma da separação de poderes e na protecção dos direitos fundamentais, dois substractos de base que exigem do poder judicial uma função neutral com relação ao legislativo e executivo, tanto assim que é o padrão dimensional para responder às exigências do Estado democrático de direito.
Acontece que estes pressupostos encontram-se nas opções já estabelecidas originariamente, por conseguinte a construção da ordem jurídica é feita de forma piramidal em cujo vértice se encontra o defensor do Estado de direito e guardião da constituição, ordem esta que legitima a actuação do Tribunal Constitucional como fiscal dos três poderes. Por isso só por conveniência de precedência protocolar pode-se inverter a pirâmide sendo certo que este entendimento por si não contende com a caracterização do actual Estado constitucional angolano em função da ruptura que já se estabeleceu formalmente com o centralismo democrático.
Assim considerando, as alterações às leis atinentes ao Tribunal Constitucional e a revisão da constituição propostas não podem acomodar uma crise política e jurídica, ou pelo menos, desenhar um quadro distante do consenso geral sobre a direcção política e a organização estadual a seguir e muito menos uma base de ruptura com os dogmas vigentes na teorização e procedimento do direito enquanto ciência, embalada em entendimentos e construções que contrariam o léxico da gramatica jusconstitucional. A questão é que a estruturação deve internamente alicerçar-se na cientificidade do direito e trazer à colação uma perspectiva de aproximação extramuros com relação ao direito constitucional de outros países, princípios e procedimentos já consolidados anteriormente pela ciência do Direito em geral e do Direito Constitucional em particular e na esfera de competência dos Estados, como por exemplo, os princípios referentes à separação de poderes, à independência dos tribunais e à classificação dos tribunais como órgãos de soberania.
Este conjunto de itens pré-dados fazem com que as constituições, além de adquirirem uma efectividade mais ou menos acentuada, constituam-se no eixo orgânico, valorativo, legitimador e prossecutor de uma ordem de domínio que recolhe os conteúdos materiais com reflexos no funcionamento coerente do tipo de Estado consagrado, salvo se tiver que conviver com factores que diminuam a sua força normativa. No caso do Estado democrático de direito este inclui a anunciação, protecção e garantias de direitos e separação efectiva dos poderes legislativo, executivo e judicial adaptados à uma democracia plural antonímia de qualquer processo de monarquização, controlo absoluto ou de corporativização que desenraíze os prepósitos jurídicos e sociopolíticos já identificados; fragilizem totalmente a relação entre o indivíduo e os poderes públicos; esfume e ao mesmo tempo embacie a radicação do sentimento de pertença emotiva-relacional-territorial, muito presente em Angola, outorgando um poder ideologicamente comprometido e supressor dos ditames teóricos e clamores de manifestações do Estado constitucional. Mesmo em momentos históricos de crise existencial da constituição e dos Estados, a constituição, enquanto lei fundamental, por exigências compromissórias, deve manter-se como o viveiro indispensável e legitimado à construção de um procedimento orientado para revisar os termos do acordo inicial sem que resulte num corte que frustre a protecção da confiança.
Depois de exercida a iniciativa de revisão constitucional, a sociedade angolana aguarda com expectativa o prosseguimento da Assembleia Nacional como assembleia constituinte, alargando o debate para se exercitar a democracia participativa e ultrapassar-se os limites decorrentes do artigo 233.º e 234.º, nº1, da CRA, tendo em conta a actual composição do Parlamento angolano e a falta de disposições normativas concretas e procedimentais sobre os termos e regime a seguir em sede de revisão constitucional. Quer isto dizer que deve estar subjacente a este processo de revisão constitucional a adopção de um procedimento democrático que radica da ideia de razão pública que confronta liberdade da maioria parlamentar e vontade do povo, bem assim como a tensão entre procedimento e substância na definição do objecto da revisão constitucional.
*Maria da Imaculada Melo, Juíza Jubilada do Tribunal Constitucional de Angola, Mestre em Direito na Área de Ciências Jurídico-Políticas, Docente da Cadeira de Direito Constitucional na Universidade Católica de Angola e Coordenadora da Jurisdição Constitucional no Instituto Nacional de Estudos Judiciários.