Raul Tchiwila – Lubango, Huíla.
Com as revoluções americana (1776) e francesa (1789) começou-se a pensar num conceito ideal de Constituição, que segundo o Professor Gomes Canotilho, seria aquele que englobasse três elementos essenciais:
- A Constituição tem de consagrar valores, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos, que funcionam como meio de limitação da actuação do poder público;
- A Constituição tem de consagrar o princípio da separação de poderes, como meio de garantir a independência dos órgãos de soberania do Estado, a constitucionalização das competências desses órgãos e a interdependência de funções – como forma de cheks and balances (freiros e contrapesos) entre esses órgãos;
- A Constituição tem de ser escrita, como forma de garantir a certeza e segurança jurídicas. Com a implementação desse conceito ideal, começam a surgir os Estados constitucionais, isto é, aqueles que têm a constituição como sendo o principal diploma jurídico.
O que é Constituição? A Constituição pode ser definida em vários sentidos, desde o sentido político, sociológico, jurídico, enfim, mas interessa-nos por agora olhar para a constituição no seu sentido jurídico.
Ora, em sentido jurídico, defendido por Hans Kelsen, Constituição é a lei suprema e fundamental de um Estado. A Constituição, por ser o principal diploma jurídico norteador da sociedade, tem de estar em sintonia com a propria sociedade.
Sabendo que a sociedade é dinâmica e não estática, só haverá efectivamente sintonia com a Constituição, se esta última, também for dinâmica. É nesse sentido que, para se garantir o dinamismo da constituição e o seu carácter normativo, foi consagrada a figura da “revisão da constituição” que opera a nível do poder constituinte derivado ou ainda poder reformador ou de revisão que é exercido por um órgão do Estado (Assembleia Nacional, Parlamento, Congresso…).
O facto de a revisão ocorrer ao nível do Poder Constituinte Derivado – poder de mudar a constituição, faz com que haja uma consequência lógica que é a não “arbitrariedade” na revisão da constituição, pois, esta operação deve ocorrer dentro de certos limites estabelecidos na própria constituição. Que limites são esses? Podemos destacar os seguintes limites:
- Limite quanto a iniciativa de revisão: em Angola só podem dar iniciativa de revisão, o Presidente da República ou a Assembleia Nacional (1/3 – revisão ordinária ou 2/3 – revisão extraordinária, dos deputados em efectividade de funções), nos termos do art. 233° e n° 2 do art. 235°, ambos da CRA;
- Limite quanto ao tempo: a revisão regra ou ordinária é aquela que ocorre depois de 5 anos a contar da data da entrada em vigor da constituição ou da última revisão ordinária, nos termos do n°1 do art.235° CRA. Angola por nunca ter feito uma revisão, a sua primeira revisão será sempre ordinária. Do outro lado temos a revisão excepcional ou extraordinária que é aquela que opera a todo o momento, isto é, antes de decorrerem os 5 anos, desde que haja iniciativa de 2/3 dos deputados em efectividade de funções, nos termos do n°2 do art.235° CRA. Com isto, depreende-se claramente que o Presidente da República só tem legitimidade para promover a revisão ordinária, conjugado com a al.i) do art.120° CRA;
- Limite quanto a circunstância: a Constituição não pode ser revista quando o Estado esteja a viver um estado de guerra, sítio ou de emergência, nos termos do art.237° CRA. Há quem se pergunte: o facto de Angola estar a viver uma situação de calamidade pública não impede a revisão da constituição? A situação de calamidade pública não é um estado de necessidade ou excepção constitucional (por exclusão de partes vide: n°2 do art.204° CRA), pelo que, não impede a revisão…afinal, no Direito Constitucional só deve ser feito quando permitido;
- Limite quanto as matérias: por força do princípio da reserva da Constituição, existem matérias que constituem o núcleo essencial da Constituição ou ainda a reserva moral da sociedade, matérias essas que no âmbito do poder de revisão não podem ser alteradas, nem que seja através do mecanismo da dupla revisão. Estas matérias são as chamadas CLÁUSULAS PÉTREAS, como o Dr. Adriano Pedro Joaquim gasta de tratar, por inspiração da doutrina brasileira. Estas cláusulas pétreas vêm vertidas no art.- 236° CRA;
- Limite quanto à competência de revisão: uma coisa é iniciativa de revisão e outra coisa diametralmente diferente é a revisão. Em Angola, a revisão constitucional é monopólio da Assembleia Nacional, que nesse caso, usa as vestes de Assembleia constituinte, vide art. 161° al. a) conjugado com o art. 235° todos da CRA.
Chegados até aqui, estamos em condições de olhar para a PROPOSTA PONTUAL DE REVISÃO CONSTITUCIONAL.
Por quê que se chama a esse acto de PROPOSTA?
A revisão constitucional é feita mediante a aprovação de uma lei de revisão constitucional. Por ser feita mediante uma lei, faz com que esta lei também obedeça ao “ipter legislativo” que tem como uma das fases, a fase da iniciativa. Esta iniciativa pode adoptar duas denominações: projecto ou proposta. Projecto quando a iniciativa é da Assembleia Nacional e proposta quando a iniciativa é do Presidente da República, nos termos dos números 1, 3 e 4 do art.167° CRA. Assim, é denominada de proposta de lei de revisão constitucional pelo facto de ter partido da iniciativa do Presidente da República.
Alcance da expressão “PONTUAL” usada pelo Presidente da República: há quem diz que a expressão pontual foi uma má colocação do PR, por ser uma expressão que nos remete à revisão extraordinária…
Não nos revemos ao sentido acima, que muitos atribuem à expressão “pontual”, afinal, à “olho nu” percebe-se que o PR não tem legitimidade para dar iniciativa de uma revisão extraordinária, o que significa que O PR não usou tal expressão para fazer significar “proposta de revisão extraordinária”. Salvo melhor entendimento, acreditamos que o Presidente da República tenha usado a expressão “pontual” para fazer entender que a revisão a que se propõe é necessária e fundamental.
Uma questão não menos importante que muito se fala é a de saber se o PR pode propor a revisão da constituação 1 ano antes do pleito eleitoral?
Para responder à este quesito terei de recorrer à um dos vários ensinamentos do meu Mestre (Dr. Nivaldino Cassiano dos Santos) quando me dizia que “o jurista é a lei que fala e a lei é o jurista em silêncio”. Com esta célebre frase, se pretende reforçar a ideia de que a lei é a principal fonte do Direito, por isso, haver a necessidade de adequarmos os nossos comentários à lei (constituição em particular).
Muitos dizem que o PR não pode propor a revisão da Constituição um (1) ano antes da realização das eleições. Apesar de respeitar essa opinião, não concordamos com ela, afinal, não existe se quer uma norma na Constituição que traga essa proibição, e já vimos que só existem três circunstâncias que uma vez verificadas impedem a revisão, e são: o estado de guerra, estado de sítio e estado de emergência…já o período de 1 ano anterior à eleição não é, pelo menos agora, um limite de revisão.
Outros ainda dizem que não é “ÉTICO” o PR propor essa revisão num período próximo à eleição: isso me lembra o homem inserido na sociedade… quando a pessoa faz é criticada e quando deixa de fazer também é igualmente criticada. Logo, existirão sempre vozes! Entendemos que, ético ou não, o Direito Constitucional é um direito de estratégias políticas, ou ainda, um Direito de jogo político, pelo que, a actuação do PR é revestida não só de legalidade, mas também de mérito político.
Devemos ter assentes que é apenas uma proposta e esta só vai produzir os feitos pretendidos pelo proponente (PR) se a outra parte (AN) aceitá-la. Ainda não houve revisão da Constituição, pois, só à Assembleia constituinte competirá alterar efectivamente a constituição.
COMENTÁRIOS SOBRE ALGUMAS MATÉRIAS DA PROPOSTAA AUTO- DEMISSÃO DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA.
A proposta de revisão da Constituição incrementa na al. c) do art. 110, a auto-demissão do PR no segundo mandato, como inelegibilidade ao cargo de Presidente da República. A Constituição da República de Angola consagra no seu art. 128 a auto demissão do Presidente da República. Assim, havendo uma perturbação grave ou crise insanável na relação institucional entre o PR e AN, pode aquele auto-demitir-se, mediante mensagem dirigida à Assembleia Nacional , com conhecimento ao tribunal constitucional, nos termos do n°1 do citado artigo.
A auto-demissão não se confunde com a renúncia. Só à título meramente exemplificativo, a renúncia torna o PR que tenha renunciado, inelegível (artigos 116° e al. h) do n°2 do art.110° todos da CRA, ao contrário da auto-demissão.
A redação do n°4 do art.128° CRA vem consagrar a ideia segundo a qual, a auto-demissão NÃO TORNA inelegível o PR que se tenha auto-demitido.
A questão que pode ser colocada é a de saber se o Presidente que se auto-demite tira alguma vantagem com isso?
A doutrina entende que a auto-demissão do PR pode ser uma “VÁLVULA DE ESCAPE, no sentido de puder ser usada pelo PR como um mecanismo de garantir a sua elegibilidade no outro pleito eleitoral. Por exemplo, um Presidente que no seu segundo mandato se auto-demite pode concorrer às eleições e se vencer, corre-se o grande risco de vier a cumprir mais do que dois mandatos, criando assim uma ruptura à norma constitucional vertida no n°2 do art.113° CRA.
É nestes termos, que para evitar a possibilidade de alguém exercer mais do que dois mandatos, a proposta de revisão constitucional decide trazer a AUTO-DEMISSÃO DO PR QUE ESTEJA NO SEGUNDO MANDATO, como inelegibilidade. No fundo, vê-se aqui, uma forma de garantir uma protecção maior à Constituição e ao Estado de Direito e democrático.
Uma outra questão que me salta à vista, tem que ver com a adição do art. 132°, que estabelece a substituição do Vice-presidente da República. O n° 1 deste artigo, estabelece que em caso de vacatura no cargo de Vice-presidente, caberá ao partido político ou coligação de partidos políticos em cuja lista foi eleito, indicar o substituto. Este substituto será designado dentre os membros dessa lista que tenham sido eleitos para o círculo nacional.
É curiosa esta consagração. Sabemos que o Vice-Presidente é um órgão electivo, provido por acto de legitimação do povo, e tem de ser o número 2 da lista pelo círculo nacional, do partido político ou coligação de partidos políticos mais votado nas eleições gerais, vide: segundo parágrafo do número 1 do art.131° CRA. O cidadão nacional ao votar num partido ou coligação de partidos políticos também pode levar em consideração a posição que determinadas pessoas ocupam na lista, pois, fazem já uma previsão de quem será o Presidente e o Vice-Presidente.
Entendemos, que não é errado ceder a missão de substituir o Vice-Presidente ao partido político em cuja lista tenha sido eleito, mas talvez seja errado se esta substituição não obedecer ao critério do “inferior hierárquico imediato da lista” ou seja, será errado se a designação for arbitrária, porque colocaria em causa a legitimidade te título. Uma coisa é indicar o “inferior hierárquico imediato da lista” que seria uma legitimação indirecta, outra coisa é indicar de forma arbitrária – que chocaria gravemente com o princípio da legitimação democrática, e consequentemente com o Estado democrático.
Em suma, a referida norma aditada (132) da proposta, deixa em aberto quanto ao critério a ser usado para designar o substituto ao cargo de Vice-Presidente da República. Estamos no caminho, só chegaremos lá caminhando. Bem haja Angola!
Por agora, é tudo, noutros momentos traremos outras questões ligadas à proposta de revisão constitucional.
Raul Eurico Tchiwila, Jurista (Lubango, Huíla)
Título original: REVISÃO DA CONSTITUIÇÃO VERSUS PROPOSTA DE REVISÃO PONTUAL DA CONSTITUIÇÃO: ALGUNS COMENTÁRIOS.
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