Leandro Ferreira, Facebook
A proposta de revisão constitucional procede à “reconstitucionalização” das nacionalizações e confiscos, figuras previstas fundamentalmente nas Leis 3/76 e 43/76, que como se sabe, enquadraram-se na política económica de resistência pós-independência (nunca estiveram previstas “substantivamente” nas LCs, mas representavam verdadeira constituição material dessa época).
Em Angola e na generalidade do mundo, estas soluções são consideradas como antidemocráticas, mas necessárias quando indispensáveis à recuperação e consolidação de um sistema económico fragilizado ou de afirmação da propriedade estatal socialista, nos modelos dessa matriz, sob a regência do Partido Único, ou ainda da existência de interesses políticos estruturantes de uma nação.
Foi assim nessa época, de crise e bloqueio económico acentuados, quando se reconheceu a necessidade de reconstrução económica nacional, para «atingir no mais curto espaço de tempo os níveis de produção de 1973 no tocante aos sectores mais decisivos e mais importantes para a vida do povo» (CC do MPLA – 23 a 29.10.1976). Estas medidas foram (e são também consideradas) indispensáveis ao estabelecimento da opção socialista com um sistema de direcção central em economia planificada nos anos 70 e 80, significando hoje um meio de reforço do Estado na economia.
Como é fácil de perceber, a opção pela economia de mercado e democracia multipartidária (com as medidas dos programas de saneamento e recuperação financeira e económica dos anos 80 e 90 – SEF, PRE e PAG) representariam em si um abandono desta espécie de política, reconhecida (ou imposta) que estava a superação da fase de resistência e a necessidade de se abrir um novo capítulo na vida política e económica nacional, com a transição constitucional que se seguiu.
A falta de “previsão substantiva” de tais instrumentos jurídicos nas LCs de 1991 e 1992 da Angola democrática multipartidária de economia livre (diplomas fundamentais que se limitaram à “previsão garantística” de protecção retroactiva das nacionalizações e confiscos já realizados ao abrigo de lei competente – vide artigos 13.º de ambas –, ou que assim fossem qualificadas, conforme salvaguardado pela Lei 7/95) tinha um significado: era o abandono político desta forma de governação e o reconhecimento de estarem superadas as necessidades de apropriação pública de bens privados em favor de interesse nacional relevante, ou de sancionamento de acções subversivas ao sistema económico, em ambos os casos determinados por medidas de natureza estritamente políticas e administrativas, passando-se para um sistema de administração judicial de tais situações.
Esse foi também o espírito intencional e consciente da CRA (artigo 97.º), devendo significar que, em verdade, não existe aqui uma lacuna. Nos termos do artigo 37.º vigente, apenas a expropriação e requisição por razões de utilidade pública justificam a restrição da propriedade privada, sendo indispensável a atribuição de indemnização prévia como condição de eficácia de tais actos.
Tanto quando sabemos, os confiscos e nacionalizações realizados (melhor se dirá “formalizados”) após 1992 resultaram apenas do aproveitamento retroactivo dos efeitos produzidos pelas Leis acima descritas (tendo o Estado apenas emitido e registado os respectivos actos de confisco, sem produção de “ex novo”).
A Lei 7/95 salvaguardou esses interesses, permitindo a sua eficácia indefinida no tempo, após um vasto e perigoso período de “retorno às origens” para a recuperação de imóveis por parte de antigos proprietários. A cobertura constitucional da irreversibilidade salvaguardou isso e, não obstante os problemas concretos que tais soluções impuseram a muitos cidadãos, a situação mantém-se estável e só muito pontualmente potencia o surgimento de conflitos na actualidade.
A “reconstitucionalização” de tais figuras levanta, por isso, algumas reservas, ainda que com compromissos constitucionais e estaduais que prometem um efectivo respeito e promoção da propriedade privada, já existente na CRA (artigos 98.º, 14,º, 37.º, 56.º) e agora reforçado com a revisão proposta para os artigos 14.º, 37.º.
A motivação é certamente resultante da intenção de recuperar os activos ilicitamente adquiridos ao Estado, para, dentre outros objectivos, potenciar a economia nacional. Isso foi dito expressamente pelos auxiliares do TPE e a situação do país corresponde agora a um quadro grave das finanças públicas, do extremar da pobreza, de fragilidades enormes do sector produtivo, do combate impetuoso à corrupção, etc.
Apesar da nobreza da acção, a questão oferece especiais dificuldades de enquadramento num sistema político e económico pensado para serem os tribunais a servir a protecção do património, sob exigências do due process of law, quer para bens do Estado, quer de bens de privados.
Será certamente um ónus político a ser assumido por quem actualmente representa o povo, tanto o partido no poder, como as formações políticas da oposição, se pensarmos nas correspondentes implicações políticas ou nas acções judiciais daí resultantes para efeito de obtenção de indemnizações. Será também um ónus tornar objectivas as razões da sua aplicação, pois, mesmo na actualidade, é difícil relacionar a existência de situações de fragilidade económica acentuada ou interesse fundamental preponderante do Estado que os justifique, em detrimento do seu carácter excepcional, talqualmente ocorria/e nos sistemas de economia centralizada planificada. Os pressupostos fácticos são ainda indefinidos e incertos até que se produzam os diplomas legais ordinários.
As suspeições que estas figuram levantam, tanto a nível interno (para o sector privado e promoção de investimento interno, com o risco de reposição de um modelo de governação há muito abandonado), como a nível externo (com riscos de retracção do investimento estrangeiro) alertam para uma análise cuidada dessa proposta de “(re)constitucionalização”. Representando uma solução estratégica do Executivo, perante os parcos e lentos resultados que se conseguem obter pela via judicial (certamente!), pode esta constituir uma solução final desesperada e desproporcionada de legitimação do “uso de quaisquer meios para os fins definidos”, acto que é reprovado pela comunidade internacional e pelo mundo dos negócios a nível global (são frequentes os exemplos de demanda internacional nesse sentido).
Recentemente, o DP n.º 155/20 efectivou a nacionalização de participações sociais do complexo hoteleiro do Miramar, em Luanda, que foram consideradas susceptíveis de serem recuperados por terem resultado de ilícita apropriação de bens de uma empresa pública. Sem que se perceba ainda como uma medida de nacionalização pode ser equacionada com a ideia de recuperação de activos (a primeira exige do Estado uma indemnização ao lesado, a segunda impõe-se-lhe em benefício do Estado), nem com a actual simultaneidade com processos criminais em curso, a leitura daquele Decreto Presidencial deixa antever e recear a espécie de solução a adoptar nos próximos tempos: nacionalização sem indemnização prévia ou imediata, sem demanda judicial e justo processo legal, com imputação de culpabilidade criminosa por via administrativa, com inversão do ónus da prova sobre a licitude do património, para quem pretender obter compensação e for acusado acusado de enriquecimento ilegal à custa do Estado.
Essa pode ser efectivamente uma solução política inteligente e rápida para encerrar o dossier da recuperação de activos, “o maior assunto de sistema dos últimos anos” que já leva alguns cansativos cacimbos. Pode significar também o reconhecimento do fracasso do actual modelo de recuperação e repatriamento forçado de activos (bem como da insistência na postura de não diálogo entre todas as partes desse dossier, com egos e revanchismos que recusam os manifestos benefícios de um acordo voluntário de sistema). Não esqueçamos que, para alcançar resultados notáveis, será necessário (e isso prevemos como bastante provável que aconteça) que sejam praticados simultânea e genericamente muitos actos de nacionalização e ou confiscos.
Estaremos preparados para lidar com as implicações políticas, jurídicas e processuais, nacionais e internacionais de tais soluções?
Qualquer que seja a resposta, deve dizer-se, por fim, que esta nova espécie de “acordo forçado de sistema” que se pretende impor por via destas medidas de autoridade, com o suporte jurídico do principal acordo político-jurídico de uma nação (a Constituição), só poderão justificar-se e conseguir ampla legitimação popular se, a meu ver, no mínimo e ao contrário do que parece evidente até ao momento, cumprirem com as exigências de igualdade, generalidade, abstracção, indiferenciação, imparcialidade e não selectividade, tanto na tomada de tais decisões, como no processo posterior de reprivatização que habitualmente lhe é consequente, com inequívocos e notáveis ganhos para o Estado e para as populações.
De outro modo, estaremos a verificar um recuo a muitas décadas da nossa história como nação independente, democrática e baseada no Direito.
Leandro Ferreira, Facebook
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