Mais uma vez (tal como em relação ao Tribunal Constitucional), parece-me que se está a confundir representatividade, protocolo, precedências protocolares (e até vaidades) com a estruturação do poder público na Constituição (ou, no mínimo, a fazer-se nela incursões doutrinais já pacíficas).
A Constituição da República de Angola diz, claramente, que são órgãos de soberania o Presidente da República, a Assembleia Nacional e “os Tribunais” (n.º 1 do art.º 105.º).
É uma realidade petrificada na história da humanidade, a de que os tribunais são órgãos de soberania e de poder público, residindo em todos eles o poder judicial, independentemente do nível em que se encontrem. Os juízes, que com eles não se confundem, são titulares de tais órgãos e exercem a soberania por meio deles.
Em regimes de democracias republicanas, a qualidade de soberano não é atribuível a pessoas ou a eventos por ela praticados. “A soberania una e indivisível reside no povo…” que a exerce por meio dos seus representantes (eleitos e designados) e por meio dos Tribunais, que “são o órgão de soberania com competência de administrar a justiça em nome do povo” (n.º 1, art.º 3.º e n.º 1, art.º 174.º, CRA, por força simultânea dos Princípios Democráticos e do Estado de Direito).
Soberanos são os tribunais e neles a soberania está corporizada e institucionalizada. Aqueles que ocupam esses órgãos passam a exercê-la individual ou colectivamente, não a titulam em nome próprio, mas exercem-na em todos os actos que constituem a sua função. Isso é claro na CRA e não carece de qualquer alteração!
Não há subordinação ou inferioridade de soberania entre tribunais superiores e tribunais de 1.ª/2.ª instância/tribunais especializados, assim como não se deve confundir hierarquia com o posicionamento dos tribunais na administração da justiça e no sistema de recursos. Pior é ainda pensar em possível subalternização em relação aos demais poderes públicos.
Num esforço injustificado para, no mínimo, os equiparar aos Deputados e aos agentes da Administração Pública, o relatório de fundamentação da Proposta de Lei de Revisão Constitucional refere “perigosamente” que:
«A proposta… tem por finalidade aclarar o conceito de “soberania” representativa do poder judicial, face aos demais poderes de soberania (Legislativo e Executivo) e à sociedade. A redacção proposta atribui o poder de representação da soberania do Judicial aos tribunais superiores, encabeçados pelo Tribunal Supremo, sendo que, colectivamente, esse poder é representado pelo Conselho Superior da Magistratura Judicial. Com esta proposta, torna-se claro que os juízes de primeira e segunda instância não são órgãos representativos da soberania do poder judicial, não podendo invocar o estatuto de “poder de soberania” na relação com as instituições dos outros órgãos de soberania (Legislativo e Executivo) e com a sociedade em geral.»
Depois, sem conseguir justificar a motivação e espécie da diferenciação, os números 6 e 8 propostos para o art.º 176.º descrevem que «os tribunais superiores são os órgãos judiciais que representam a soberania do poder judicial» e «os tribunais de primeira instância representam a soberania do poder judicial no momento em que se constituem em audiência para a apreciação e tomada de decisões judiciais».
Além dos perigos que representa para o já penoso trabalho e situação a que são voltados os tribunais/juízes na primeira instância, com essa medida agrava-se ainda mais a autoridade e imperatividade dos seus actos, do início ao fim de cada processo, onde se reportam diariamente inúmeros obstáculos e resistências de cumprimento (começando pelos próprios agentes da Administração Pública, civil e militar/militarizada e deputados, a quem se pretende equiparação).
Um tribunal sem soberania não é tribunal. O juiz que não pode identificar-se em representação do poder soberano que o Estado lhe confere, quando se encontre em exercício de funções, em qualquer etapa de um processo, não é verdadeiramente um juiz.
Não se percebe essa perspectiva de recusar a soberania (ou “representação da soberania” como se diz) aos tribunais e juízes de 1.ª e 2.ª instância.
Não recuemos nas conquistas alcançadas, nem criemos areias movediças em solo de quem tem de agir com firmeza.
Acredito na bondade da intenção, por isso também confio no recuo em relação a esta solução, em toda a sua dimensão atentatória ao Estado Democrático de Direito.
Leandro E. G. Ferreira, Advogado e Docente da Faculdade de Direito da Universidade Católica de Angola
Fonte: Facebook
De facto o artigo de opnião jà vem começar a dar sugestões construtivas, lógicas e academica para a proposta de Lei revisão de da CRA
Muito será útil..
Apesar de que sou de opnião que o que está de facto ocorrer é uma iniciativa exagerada e apressada do executivo. Isso exige tempo, e tempo exige especialistas e academia como um todo para tal…