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O “Manicómio Jurídico” e a Reforma da Justiça e do Direito Angolano. Fernando Cafunda

Resumo

A questão sobre a Reforma da Justiça e do Direito, tem causado no banquete jurídico angolano as mais variadas opiniões, sobretudo entre os juristas, funcionários dos tribunais, académicos e fazedores de opinião.

A justiça hoje transformou-se num campo problemático, ineficiente, e com condições desfavoráveis para a sua administração com qualidade. A sociedade reclama que os tribunais são morosos e que não há celeridade processual, muitos oficiais de justiça trabalham de forma “empírica”. Não há monitorização no exercício da actividade, nem uma avaliação do desempenho. O sancionamento em caso de infracções não funciona. Todos os trabalhos são feitos de forma arcaica.

A alavanca para que a Reforma do Sistema Jurídico e do Direito angolano caminhe segura e atinja os objectivos pretendidos, começa nas questões: O que compreender por reforma? O que deve ser reformado e porque razão reformar? A reforma da justiça é importante para o país agora? Como, quando, onde e que atores devem ser chamados para fazê-lo?

Pensámos que, um tema como o que se nos apresenta não se esgota rapidamente, daí que o presente artigo, é apenas a primeira parte dos outros que pretendemos partilhar.

A Problemática

Qualquer mudança numa sociedade gera desconforto nalguns sectores e conforto para outros sectores da sociedade. Quando falamos de reforma, pressupõe dizer que alguma coisa não está bem, que o que vivemos até agora não se enquadra com o modelo de sociedade que pretendemos construir de hoje em diante, neste caso, urge fazer-se alterações profundas.

O que compreender por reforma? O que deve ser reformado e porque razão reformar? A reforma da justiça é importante para o país agora? Como, quando, onde e que actores devem ser chamados para fazê-lo?

Pensámos que o ponto de partida para que a reforma do sistema jurídico e do direito angolano surta os efeitos esperados, reside nas questões supra citadas, pois às incontáveis críticas ao desempenho das instituições encarregadas de administrar a justiça em Angola, praticamente, reflecte-se na “dúbia” separação de poderes.

A Constituição da República de Angola (Art.º 105 CRA) consagra o princípio da separação dos três poderes que, como se sabe, são independentes entre si, mas possuem interdependência funcional. É comum ouvirmos “a justiça tarda e falha; a justiça não é igual para todos; a justiça é elitista; para os amigos tudo para os inimigos a lei etc.,” tornou-se dominante a ideia de que às instituições judiciais, além de incapazes de responder à crescente demanda por justiça, tornaram-se anacrónicas e, pior ainda, refractárias a qualquer modificação.

A história ensina que o desenvolvimento e a pujança das nações dependem do desenho e estruturação das suas instituições fundamentais, entre as quais o da Justiça, órgão produtor de decisões fundamentais e responsável pela pacificação social, no entanto, umas das principais vias para que Angola saia do marasmo em que se encontra está plasmado na estruturação da justiça e do direito.

O cancro do nosso actual sistema de justiça, podemos resumi-lo em três aspectos:

O primeiro está no facto de que a justiça se transformou em questão percebida como problemática por amplos sectores da população, da classe política e dos operadores do direito, passando a constar da agenda de reformas.

Segundo, tem diminuído consideravelmente o grau de tolerância com a baixa eficiência do sistema judicial e, simultaneamente, aumentado a corrosão no prestígio dos tribunais.

Terceiro, mesmo os operadores do sistema de justiça, tradicionalmente mais reservados em suas apreciações e vistos como portadores de forte espírito corporativo, têm reconhecido que as condições presentes são desfavoráveis. Dentre as quais, saliente-se à escassez de recursos materiais, deficiências na infra-estrutura e aos ritos processuais. A indiscutível insatisfação com a prestação jurisdicional, embora central na elaboração de qualquer diagnóstico, encobre questões diversas, provenientes de causas diferentes, provocando consequências distintas.

Estes problemas, não se circunscrevem apenas dentro da instituição jurídica, numa altura em que às políticas do executivo direcciona-se para a criação de bom ambiente de negócio e a atracção de investimentos estrangeiros, esse cancro produz efeitos abrangentes, interferindo na ordem legal, passando pela garantia dos direitos individuais e colectivos e até mesmo interpondo sérios obstáculos à implementação de projectos de desenvolvimento e de inserção da economia nacional na nova ordem internacional.

A extrema visibilidade dos problemas decorrentes da dimensão política da justiça, nos últimos anos, decorre, fundamentalmente, do facto do país viver momentos de ajuste económico, político e social e de adaptação de toda a sua infra-estrutura às exigências de inserção no mercado internacional.

Nesse sentido, são frequentes às críticas segundo as quais vive-se num manicómio jurídico; a magistratura age ideológica e irresponsavelmente. As dificuldades de acesso aos órgãos de justiça, é um factor inibidor da realização plena da cidadania.

Entendemos que o sistema judicial angolano nos moldes actuais estimula um paradoxo: “demandas de menos e demandas de mais”, ou seja, de um lado, expressivos sectores da população acham-se marginalizados dos serviços judiciais, doutro lado, há os que usufruem em excesso da justiça, gozando das vantagens de uma máquina lenta, atravancada e burocratizada.

As deficiências do aparelho judicial, somadas aos ritos processuais, criam situações de vantagem e/ou privilégios, portanto, de desigualdade.

A despeito de se verificar tendências ascendentes na demanda e na oferta de serviços em todas as instâncias, a imagem é de absoluta inoperância, com descompasso expressivo entre a procura e a prestação jurisdicional, e com frequência, aponta-se o número insuficiente de juízes como um dos factores mais importantes para justificar a baixa agilidade no desempenho dos tribunais. Embora seja difícil apontar uma única causa como responsável pelos problemas de distribuição de justiça, seria impossível ignorar o papel desempenhado pelos próprios magistrados no exercício de suas atribuições.

Referimo-nos a dois aspectos: ao recrutamento e à mentalidade, variáveis com forte influência na forma de perceber e de lidar com as questões relacionadas à distribuição de justiça.

A nível da contratação de oficiais de Justiça, não há rigorosidade, e o conteúdo dos exames é com base em cultura geral. O oficial entra para os tribunais sem ter a mínima noção da actividade que vai exercer. Os oficiais são o “coração” para a operacionalização dos processos nos tribunais. Em paralelo, temos o Instituto de Estudos Judiciais (INEJ) que, em nosso entender, a par da formação de juízes, devia apostar também na formação contínua dos mesmos.

Quanto à mentalidade, a justiça angolana não difere, neste aspecto, de outras instituições igualmente fechadas, com traços aristocráticos. O figurino da instituição tem se mostrado um ponto problemático, uma vez que, longe de encorajar o substantivo, prende-se à forma; invés de dar cavaco ao compromisso com o real, incentiva o saber abstracto. Tanto assim que, hoje, dificilmente, pode-se afirmar que a magistratura constitua um corpo homogéneo. “A independência dos tribunais carece da independência dos próprios juízes. Os dois tipos de independência são complementares entre si e a linha que os separa é extremamente ténue” (Feijó et all, 2015, p. 500). No entanto, quase é consensual afirmar o entendimento de que a reforma em curso terá a ver essencialmente com matérias de um dos órgãos do poder de Estado, ou seja, o poder judicial.

A Comissão da Reforma da Justiça e do Direito não deve ser (como no passado) um palco de achismos, de egos inflamados, de vaidades académicas que digitavam leis nos meandros das ideologias políticas de uma certa ala, como também, não se deve pensar que essa nobre missão seja apenas realizada pela elite jurídica.

É preciso que a Comissão de Reforma da Justiça e do Direito se espelhe numa metodologia de trabalho inclusivo, onde a iluminação dos vários sectores de conhecimentos, sociólogos, antropólogos, historiadores, filósofos, tradicionalistas, economistas, psicólogos, etc., ecoem a sua luz. Nossa historia mostra que a exclusão gerou sempre efeitos catastróficos para o país.

Nota conclusiva

Portanto, se queremos uma reforma inclusiva, aberta e aceite por todos os seus actores, não há outra forma de agir, senão abrir às portas de discussão à sociedade civil e, juntos, iniciarmos este diálogo em busca de um sistema de Justiça mais aberto, mais próximo dos cidadãos e sobretudo mais eficaz.

As melhorias no sector judicial fazem parte de um projecto político e económico de enorme relevância nacional para assegurar uma Justiça eficiente, imparcial, livre de qualquer traço de corrupção, favoritismo ou nepotismo, sendo que salvaguardar o sector da Justiça é garantir o edifício da democracia.

Os operadores judiciários, têm a nobre missão de assumir à tutela dos direitos fundamentais, assegurando a independência e imparcialidade, fundamentais para o Estado de Direito que pretendemos torna-lo forte, cada vez mais.

Fernando Cafunda

Licenciado em Direito, escritor, crítico literário, membro do movimento Lev´Arte, com crónicas e artigos publicados no Clube K, Revista Palavra e Arte e Letras de Ouro.

Referências bibliográficas

Constituição da República de Angola. 2010. Feijó, MC. Et all. (2015). Constituição da República de Angola: enquadramento dogmático – A nossa Visão. Almedina. Lisboa. Volume III.

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